Amor anda de mãos dadas com o temor
O amor e o temor andam juntos? Entendo que sim, mesmo que
não identifiquemos os medos que o acompanham, mas que nem por isso deixam de
estar presentes. Diria, onipresentes. Tememos, quando amamos, por exemplo, não
sermos correspondidos pela amada, por maiores demonstrações em contrário que
ela nos dê. Nutrimos receio de que algo em nossa aparência, ou em nossa
conduta, ou em nossa vida, ou sabe-se lá mais no quê, não seja apreciado por ela.
E os temores se multiplicam, antes, durante e mesmo no pós-relacionamento
amoroso. Aliás, nem mesmo sou o autor dessa constatação. Li-a, há algum tempo,
meditei a propósito e não tive como discordar.
Quem escreveu isso, e há quatro séculos, foi um dos
ocasionais e um tanto raros gênios da Literatura que a humanidade já produziu.
Foi o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, cujo quarto centenário de morte
irá se completar em 23 de abril deste ano de 2016. Curiosamente, ele morreu no
mesmo dia, mês e ano que outro consagrado (e polêmico) ícone literário de todos
os tempos. Refiro-me ao poeta, dramaturgo e ator inglês William Shakespeare. Se
bobear, ambos morreram, até, na mesma hora (embora essa suposição seja somente
minha, sem nenhuma base em fatos ou mesmo em evidências), sabe-se lá.
A afirmação exata de Cervantes a propósito foi esta: “Andam
o amor e o temor tão unidos que, para onde quer que voltes o rosto, vê-los-eis
juntos. E o amor não é soberbo, como alguns dizem, mas é humilde, agradável e
manso. Tanto que costuma perder aquilo a que tem direito para não dar desgosto
a quem quer bem”. Essas palavras constam do livro que Cervantes considerou sua
obra-prima. Se vocês estão pensando em “Dom Quixote de La Mancha” (cujo título
verdadeiro é “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha”) se enganaram.
Embora se trate da obra que o consagrou e imortalizou na literatura mundial, o
escritor espanhol não tinha, lá, grande apreço por ela. Tanto que levou quase
dez anos para publicar a segunda parte e quase desistiu dessa continuação.
O livro pelo qual Miguel de Cervantes tinha maior apreço,
que considerou, até o dia da sua morte, sua obra-prima, é o romance “Os
trabalhos de Persiles e Sigismunda”. O irônico é que ele nem mesmo testemunhou
sua publicação. Esse “romance bizantino”, como foi classificado na época, foi
publicado em 1617, um ano após a morte do autor. O livro teve espetacular
acolhida. Prova que foram impressas seis edições quase simultâneas, lançadas
praticamente juntas em seis diferentes e importantes praças da Europa: Madri,
Barcelona, Lisboa, Valência, Pamplona e Paris. Fico me perguntando: o que deu
errado, o que aconteceu de fato com esse romance para que fosse esquecido quase
que por completo, em reles par de anos, a tal ponto de ás vezes sequer ser
mencionado quando as pessoas citam a obra de Cervantes? Vá se saber!
Coisa parecida com esta acontece, volta e meia, com muitos
escritores. Aconteceu comigo. Nem sempre os livros que consideramos “perfeitos”
(ou quase) têm boa receptividade por parte da crítica e, sobretudo, dos
leitores, que preferem outras obras nossas (quando preferem, claro), justamente
aquelas a que não damos a mesma importância. Talvez já tenha ocorrido o mesmo
com você, caríssimo escritor, que me dá a honra da sua leitura. E nem precisam
ser livros. Há dias, por exemplo, que escrevo crônicas “redondinhas”, que as
pessoas ao meu redor consideram geniais, nas quais não detecto a menor falha,
escritas com sentimento e paixão e... quando as divulgo nos vários espaços de
divulgação que disponho, não geram o menor efeito. Passam batidas, quando não
são criticadas exatamente por aquilo que considero sua maior virtude: por “falta
de emoção”. Claro que é frustrante, mas...
Os “Trabalhos de Persiles e Sigismunda” é uma bela história
de amor. Emocionei-me com sua leitura. Narra as peripécias de um príncipe e de
uma princesa nórdicos, apaixonados, que decidem se casar, mas em Roma, para
onde partem do Norte da Europa. Ambos fazem-se passar por irmãos. Ela veste-se
de homem, para evitar alguns perigos a que as mulheres estavam submetidas na
época. Os dois cruzam mares, repletos de ilhas, até chegarem a Lisboa. Da
capital portuguesa, seguem a pé, em direção à Cidade Eterna, tendo que superar
obstáculos mil. Seus nomes de batismo são Periandro e Auristela (que só após
atingirem o objetivo, ou seja, depois do matrimônio cristão, e em uma igreja de
Roma, mudam para Persiles e Sigismunda). Cervantes nos apresenta, além dos dois
apaixonados protagonistas, grande número de personagens, alguns até bastante
exóticos, que nos chamam a atenção. Sua pretensão, com esse livro, foi criar,
para a narrativa espanhola, um modelo de romance grego de aventuras adaptado a
uma visão de mundo católica.
O romance durou catorze anos para ser escrito e acabado e
teve duas etapas de redação. A primeira foi entre 1599, quando iniciou a escrita,
e 1600, quando interrompeu os trabalhos. Levou nove anos para retomá-lo, o que
fez em 1609, completando-o em 1613, embora depois disso ainda fizesse alguns
retoques. Como se vê, foi um livro pensado, refletido, “esmerilhado” e
impregnado de muito realismo, característica que os críticos sempre destacaram
na obra de Cervantes. O escritor tinha verdadeira obsessão pela
verossimilhança, mesmo quando lançava mão do fantástico, o que era bastante
frequente. Veja-se como Dom Quixote tratava moinhos de vento: como gigantes que
tinha que vencer. Em suma, fico com a conclusão desse gênio, sobre o amor, com
que iniciei estas reflexões. A de que esse magno sentimento anda, sempre, de
mãos dadas com o temor. E não anda?!!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
O medo de perder é o maior deles.
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