Abduzido
* Por
Marcelo Sguassábia
O abade Nathanael
começou, de fato, a acreditar cegamente em Deus depois da primeira volta no
disco voador. Até então, sua fé um tanto vacilante fazia-o crer
burocraticamente no Ser Supremo em 3 pessoas, conforme os catecismos, sem
maiores contestações. Mas no íntimo o incomodava saber que o que sentia estava
longe de ser adoração convicta, a despeito dos 28 anos de abadia. Parecia estar
enganando a Deus, se existisse, e a si, de cuja existência também tinha sérias
dúvidas. Até que o pequeno ser ocre e pegajoso lhe apareceu no claustro, lhe
tomou pela mão e o levou, por entre nuvens, ao cerne de todas as perguntas até
então sem respostas.
Cada pequena luz do
painel da nave disparava uma lembrança. O machado rachando a lenha para
mortificar a carne e elevar o espírito. O ofício em oração e canto, o banco
duro, a geada emudecendo o sino, o genuflexório. O olhar do ET era para ele uma
homilia muda, havia um sermão interminável sendo dito e escutado naquele
silêncio solene e sem gravidade. Atravessavam os dois, em segundos, nebulosas
inteiras. A abadia, em todo o seu esplendor, cheirando a vela e incenso, talvez
fosse um delírio de madeira e mármore, e toda sua vida uma distração momentânea
da qual acordava agora. Talvez fosse a vida de verdade um voo a esmo junto ao
ET, e que tudo o que imaginava ter vivido não passasse de uma soneca tirada
ali, na poltrona de co-piloto. Mas explicar como aquele o hábito puído, o
crucifixo e o olhar contrito refletido nos instrumentos de bordo?
Assim foi aquela
volta, a primeira de tantas. Entre uma lua e um sol qualquer do calendário, lá
estava o serzinho ocre, como que cumprindo uma missão celeste, pronto para de
novo levar consigo o abade.
Um belo dia, foi a vez
do abade tomar o ET pela mão e levá-lo, escondido debaixo do hábito, para
assistir à missa matinal. Desobedecendo a recomendação de ficar calado, ele
soltou um sonoro "Ele está no meio de nós" após o padre dizer "O
Senhor esteja convosco". Lançou um olhar cúmplice para o abade e sacou da
algibeira extraterrestre um retratinho de família, com ele pequenino na pia
batismal, rodeado pelo pai, a mãe e os padrinhos. Todos ocres. Todos boa gente
como ele.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
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