A globalização e nós
* Por
Roberto Campos
Um pensador de ótica
social - democrática, Anthony Giddens, observou recentemente que poucos termos
são freqüentemente usados, e tão pobremente conceptualizados, quanto
“globalização”. Para alguns, representa uma internacionalização sem precedentes
da vida econômica e política; seria o colapso das fronteiras, anunciando
câmbios fundamentais na sociedade e na cultura. É tipicamente a turma do “fim”;
o fim da História, o fim do trabalho, o fim da família. Para a comunidade
internacional dos negócios é a perspectiva do crescimento incontido do mercado.
Para os “hiperglobalizantes”, prenuncia a vitória dos mercados sobre o Estado,
e, assim, uma reconfiguração do mapa político do mundo, com base em
cidades-Estado e regiões econômicas, em vez de estados nacionais. Já os
“céticos da globalização”, como P. Hirst, dão-se à pachorra de mostrar que a
economia mundial esteve mais integrada no começo do que no fim do século XX.
Mas que há algo
profundamente novo, isso há. P. Sutherland, hoje diretor gerente da Goldman
Sachs Internacional, no auge da crise financeira mundial, em 98, depois da
genuflexão ideológica de praxe às virtudes da globalização, reconhece que ela
fez a vida difícil para muitos. Ameaça deixar parte do mundo para trás, e
assusta tanto os ricos (que temem perder seus padrões de vida) quanto os pobres
(que se sentem cada vez mais distantes do Primeiro Mundo). Alguns desses
efeitos provêm de outras causas facilmente identificadas (câmbios tecnológicos,
deficiências educacionais, mercados de trabalho inflexíveis, impostos altos, e
uma força de trabalho em envelhecimento). Mas a galera acha que as causas da
angústia são o comércio e os investimentos globais.
E que fazer de
problemas que surgem de um sem-número de causas que é impossível compreender
totalmente e que tendem a ficar cada vez mais complicados, como a degradação
ambiental, as doenças, o crime, o terrorismo, as pressões migratórias
incontroláveis?
O economista americano
R. Kuttner, que se intitula um “liberal” (o que nos Estados Unidos indica
tendências esquerdistas), afirma que a grande conquista deste século foi
domesticar a força bruta do capitalismo laissez-faire. Através de políticas
macroeconômicas ativas e da regulamentação das tendências autodestrutivas dos
mercados, o capitalismo teria colocado um piso em baixo da força de trabalho.
Recorreu a investimentos políticos diretos, para cura das recessões, e adotou
normas ambientais. Tudo isso gerou um capitalismo mais eficiente e ao mesmo
tempo mais socialmente aceitável, temperando os extremos de volatilidade e
desigualdade.
É claro que as
esquerdas brasileiras neoburras não concordam. Acham que esta história de
neoliberalismo são idéias da burguesia e dos seus intelectuais para “aniquilar
uma seção da nossa sociedade”. Isso representa um pouco o lado obscuro do
espírito, que precisa de inimigos misteriosos e de forças ocultas para juntar
coisa com coisa. Quando o Papa Inocente VIII, no final do século XV, com a
assistência técnica de dois monges alemães, Kramer e Sprenger, inaugurou,
através da bula “Summi Desiderantes”, a fase “moderna” da Inquisição, estava
apenas expressando aquilo que no seu tempo era um pensamento.
Pensamento
generalizado. Acreditava-se que forças demoníacas estavam operando às escondidas.
Houve uma febre repressiva que se estendeu a leigos e protestantes, nobres e
camponeses, doutos e ignorantes, cavaleiros e juristas, que passaram todos a
acreditar em coisas absurdas, como a existência de relações sexuais com o
Belzebu.
Já tivemos demonologias
de muitos tipos. Ainda peguei as purgas de Stalin, e vi de perto, há quase 50
anos, o fenômeno do macarthismo, nos Estados Unidos. Baixando o nível de
tragédia para o carnaval, tivemos aqui as “forças ocultas” com Vargas e Jânio.
Voltando, porém, à
globalização. O que acabou com a crença num universo movido à feitiçaria foi
uma “inovação” que rendeu pouco a um empresário de nome Johannes Gutenberg não
foi “a” causa. Inúmeras variáveis entraram no processo: avanços tecnológicos,
do plantio do nabo à metalurgia das armas de fogo, ao aperfeiçoamento da
construção naval, à astronomia de Copérnico e Kepler, à física experimental de
Galileu aos descobrimentos geográficos. Só que neste último século e meio a
aceleração científica, tecnológica e econômica tornou-se prodigiosa. Mudanças
que se davam ao longo de gerações e de décadas foram encurtadas para anos ou
meses. E o complexo IC (informação e comunicações), possibilitando a interação
face a face entre gente de todas as partes, encolheu o mundo a uma aldeia
virtual. Só para dar uma idéia, em 1942 o valor dos ativos intangíveis das
empresas americanas cotadas em bolsa (Índice Dow Jones), que em 1920 era
estimado em 87% dos ativos tangíveis (instalações, máquinas, estoques etc.) ,
caiu para quase zero, e na metade dos anos 90 já era umas quatro vezes maior do
que estes!
É o que a economia do
conhecimento está fazendo. Hoje a Microsoft vale mais que a General Motors. Os
clicks (toques de computador) valem mais que os bricks (tijolos).
Há aquela história da
diferença entre um psicótico e um neurótico. Aquele acha que 2 mais 2 são 5,
enquanto que este sabe que são 4, mas não tolera a idéia. A globalização é um
processo que está acontecendo - sem pedir licença a nenhum de nós. Acentuo a
palavra “processo”. Vai ser penoso para alguns, mas, com o tempo, vantajoso
para a maioria. Sobretudo, porém, é um dado da realidade, a partir do qual
temos de colocar-nos, tanto quanto possível, com uma visão estratégica,
procurando antever os custos e benefícios das sucessivas jogadas ao longo do
tempo. Reanimar esquemas estáticos pensados para os problemas de 1950, como
fazem nossos neonacionalistas, não é o portal de entrada no século XXI.
Jornal O Globo - Rio
de Janeiro - RJ, 20/02/2000
*
Economista, diplomata e professor, ex-ministro, membro da Academia Brasileira
de Letras.
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