domingo, 6 de dezembro de 2015

Perigos internos e externos


* Por Salvador de Mendonça


Há muito que em toda a vasta extensão do Brasil os filhos desta terra e os que nela vieram encontrar nova pátria mostram-se tomados de receios pelo futuro que nos aguarda. Os únicos brasileiros satisfeitos são os que no pano verde da roleta nacional fizeram fortuna do dia para a noite, assaltando as repartições de Estado para obterem as gordas concessões que os tornaram “ricos, desonrados e contentes”.

No meio da calma aparente que dir-se-ia cobrir a nação inteira como um sudário, surgiu de improviso a explosão de duas verdadeiras bombas de dinamite; a notícia de que o Sindicato Farquhar, a começar do território do Amapá e a terminar nas fronteiras da Nação Argentina se estava apoderando de enormes zonas do Brasil, capazes de fornecerem territórios a maiores Estados que o da Bélgica e o da Holanda, depois de conquistar extensas redes de estradas de ferro, portos, monopólios da distribuição de força elétrica, iluminação e viação urbana das nossas cidades mais importantes; e a divulgação da opinião do sr. James Bryce de que sendo o Brasil uma enorme nação, com inúmeras riquezas e muito mal governada, tais riquezas não podem ficar nas mãos dos brasileiros.

O abalo produzido pelo conhecimento simultâneo dos dois fatos despertou a opinião pública de nossa terra.

Há muito quem afirme que no Brasil não há opinião pública, a qual não passa de uma frase de ocasião na oratória barata dos embaixadores do povo, quando o querem lisonjear. Tenho que se ilude quem tal assevera: há entre nós uma opinião pública, que, de envergonhada com a direção que há algumas décadas vão tendo os públicos negócios, tratou de se recolher ao mais íntimo santuário da consciência nacional para se não emporcalhar com a podridão que atualmente deturpa o nome da pátria, outrora cercado de consideração e respeito. As nacionalidades, como o conjunto dos seus melhores cidadãos, têm destes afastamentos ditados pela veneração aos princípios da sã moral. Logo depois da Guerra Civil nos Estados Unidos, notaram os mais argutos observadores que nas eleições federais havia crescido o número de abstenções e que a nação parecia desinteressar-se desses pleitos e descrer da eficácia do voto, força motora da grande União. O fato é que a febre das fortunas rápidas, feitas durante o sanguinolento conflito, enchera de nojo os cidadãos mais sérios e dignos, que se arredando das urnas lavravam o seu protesto contra os tratantes contratantes. A raça é outra, mas afinal o homem é o mesmo em toda a parte, e não será de admirar que entre nós se esteja repetindo o fato e que dentro em pouco a classe mais educada do Brasil esteja falando ao povo e concitando-o a se pôr de pé.

Quem assistiu no Rio de Janeiro em 1863 à reunião do povo em redor do velho Palácio Imperial, aos milhares conclamando a necessidade de vindicar a honra nacional, insultada pelo estulto Christie, ministro inglês, e obrigando o imperador a vir à sacada do Paço e a mandar declarar por um de seus ministros que o seu governo, pelos órgãos constitucionais, lavaria a afronta, não pode acreditar que em meio século estejamos tão mudados que a nossa espinha dorsal já não se possa manter ereta. O laudo do rei da Bélgica que decidiu que à Grã-Bretanha cumpria reatar as relações diplomáticas que haviam sido suspensas e dar-nos satisfação, levou o novo ministro inglês ao acampamento de guerra, em que o recebeu o Sr. D. Pedro II, no cerco de Uruguaiana, dizendo, em resposta ao discurso do diplomata, que ali se achava no cumprimento do dever, que lhe impunha a dignidade do Brasil.

A República, composta de brasileiros que devem ter herdado as virtudes de seus pais, não pode, diante da ameaça estrangeira, fazer menos do que fez o seu velho imperante. Se o fizesse devia desde logo abdicar o governo desta terra. Tenho que, conhecedora dos fatos, tais como se estão passando, a nação instruirá aos seus delegados para que cerquem de todas as garantias o nome do Brasil e votem as leis para isso indispensáveis.

A prova de que a nação se prepara para um ressurgimento está na repercussão que a notícia dos perigos internos e externos vai tendo no Congresso e na imprensa. Os dignos representantes dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, os srs. Pandiá Calógeras e Maurício de Lacerda, já lançaram o protesto da dignidade nacional aos quatro pontos cardeais do Brasil. Em breve a nação inteira terá ouvido o alarma e sacudindo o torpor que lhe encadeia os braços, mostrar-se-á digna herdeira dos soldados do Paraguai.

Sejam quais forem os recursos pecuniários do enorme sindicato que se está alastrando sobre o nosso vasto território, os seus capitais, que têm bastado para o suborno de alguns dos nossos cidadãos de maior fama e goelas ainda maiores, não serão suficientes para comprar a consciência nacional.

Sejam quais forem os arranjos diplomáticos das grandes nações européias que procurem solver as suas dificuldades intestinais à nossa custa, acredito que se a Alemanha não achou bastante as compensações territoriais que este ano recebeu no Congo Francês, e já não tem onde meter-se no litoral do norte da África, ocupado por ingleses, que se preparam para a anexação do Egito; por italianos que há pouco cometeram a rapina da Líbia; por franceses que se assenhorearam definitivamente de Marrocos, e por espanhóis que se não deixaram desalojar do resto ocidental dessa costa, não há de ser em três Estados da Federação Brasileira que virá com êxito expandir o seu território colonial.

Os erros, e não são só da República, por meio dos quais foram entregues ao estrangeiro tamanhas zonas brasileiras, com a indiferença de um fatalismo muçulmano e com os quais permitimos que em terras brasileiras se estabelecessem núcleos numerosos de uma só nacionalidade que se está constituindo em Estado no Estado, expelindo a língua do Brasil de sua própria casa redigindo documentos oficiais em língua alemã, criando e mantendo escolas para o ensino exclusivo do alemão, aparelhando escolas de tiro só para alemães, podem ainda ser remediados por um milagre de patriotismo.

Não é possível que só nos reste escolher a maneira pela qual devemos ser comidos; se de forno com recheio à la Farquhar, se em pedaços e de molho pardo à la James Bryce.

Para muitos o que é fora de dúvida é que seremos comidos.

(A situação internacional do Brasil, 1913.)


* Jornalista, advogado, diplomata, romancista, ensaísta, poeta e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.

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