Perigos internos e externos
* Por
Salvador de Mendonça
Há muito que em toda a
vasta extensão do Brasil os filhos desta terra e os que nela vieram encontrar
nova pátria mostram-se tomados de receios pelo futuro que nos aguarda. Os
únicos brasileiros satisfeitos são os que no pano verde da roleta nacional
fizeram fortuna do dia para a noite, assaltando as repartições de Estado para
obterem as gordas concessões que os tornaram “ricos, desonrados e contentes”.
No meio da calma
aparente que dir-se-ia cobrir a nação inteira como um sudário, surgiu de
improviso a explosão de duas verdadeiras bombas de dinamite; a notícia de que o
Sindicato Farquhar, a começar do território do Amapá e a terminar nas
fronteiras da Nação Argentina se estava apoderando de enormes zonas do Brasil,
capazes de fornecerem territórios a maiores Estados que o da Bélgica e o da
Holanda, depois de conquistar extensas redes de estradas de ferro, portos,
monopólios da distribuição de força elétrica, iluminação e viação urbana das
nossas cidades mais importantes; e a divulgação da opinião do sr. James Bryce
de que sendo o Brasil uma enorme nação, com inúmeras riquezas e muito mal
governada, tais riquezas não podem ficar nas mãos dos brasileiros.
O abalo produzido pelo
conhecimento simultâneo dos dois fatos despertou a opinião pública de nossa
terra.
Há muito quem afirme
que no Brasil não há opinião pública, a qual não passa de uma frase de ocasião
na oratória barata dos embaixadores do povo, quando o querem lisonjear. Tenho
que se ilude quem tal assevera: há entre nós uma opinião pública, que, de
envergonhada com a direção que há algumas décadas vão tendo os públicos
negócios, tratou de se recolher ao mais íntimo santuário da consciência
nacional para se não emporcalhar com a podridão que atualmente deturpa o nome
da pátria, outrora cercado de consideração e respeito. As nacionalidades, como
o conjunto dos seus melhores cidadãos, têm destes afastamentos ditados pela
veneração aos princípios da sã moral. Logo depois da Guerra Civil nos Estados
Unidos, notaram os mais argutos observadores que nas eleições federais havia
crescido o número de abstenções e que a nação parecia desinteressar-se desses
pleitos e descrer da eficácia do voto, força motora da grande União. O fato é
que a febre das fortunas rápidas, feitas durante o sanguinolento conflito,
enchera de nojo os cidadãos mais sérios e dignos, que se arredando das urnas
lavravam o seu protesto contra os tratantes contratantes. A raça é outra, mas
afinal o homem é o mesmo em toda a parte, e não será de admirar que entre nós
se esteja repetindo o fato e que dentro em pouco a classe mais educada do
Brasil esteja falando ao povo e concitando-o a se pôr de pé.
Quem assistiu no Rio
de Janeiro em 1863 à reunião do povo em redor do velho Palácio Imperial, aos
milhares conclamando a necessidade de vindicar a honra nacional, insultada pelo
estulto Christie, ministro inglês, e obrigando o imperador a vir à sacada do
Paço e a mandar declarar por um de seus ministros que o seu governo, pelos
órgãos constitucionais, lavaria a afronta, não pode acreditar que em meio
século estejamos tão mudados que a nossa espinha dorsal já não se possa manter
ereta. O laudo do rei da Bélgica que decidiu que à Grã-Bretanha cumpria reatar
as relações diplomáticas que haviam sido suspensas e dar-nos satisfação, levou
o novo ministro inglês ao acampamento de guerra, em que o recebeu o Sr. D.
Pedro II, no cerco de Uruguaiana, dizendo, em resposta ao discurso do
diplomata, que ali se achava no cumprimento do dever, que lhe impunha a
dignidade do Brasil.
A República, composta
de brasileiros que devem ter herdado as virtudes de seus pais, não pode, diante
da ameaça estrangeira, fazer menos do que fez o seu velho imperante. Se o
fizesse devia desde logo abdicar o governo desta terra. Tenho que, conhecedora
dos fatos, tais como se estão passando, a nação instruirá aos seus delegados
para que cerquem de todas as garantias o nome do Brasil e votem as leis para
isso indispensáveis.
A prova de que a nação
se prepara para um ressurgimento está na repercussão que a notícia dos perigos
internos e externos vai tendo no Congresso e na imprensa. Os dignos
representantes dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, os srs. Pandiá
Calógeras e Maurício de Lacerda, já lançaram o protesto da dignidade nacional
aos quatro pontos cardeais do Brasil. Em breve a nação inteira terá ouvido o
alarma e sacudindo o torpor que lhe encadeia os braços, mostrar-se-á digna
herdeira dos soldados do Paraguai.
Sejam quais forem os
recursos pecuniários do enorme sindicato que se está alastrando sobre o nosso
vasto território, os seus capitais, que têm bastado para o suborno de alguns
dos nossos cidadãos de maior fama e goelas ainda maiores, não serão suficientes
para comprar a consciência nacional.
Sejam quais forem os
arranjos diplomáticos das grandes nações européias que procurem solver as suas
dificuldades intestinais à nossa custa, acredito que se a Alemanha não achou
bastante as compensações territoriais que este ano recebeu no Congo Francês, e
já não tem onde meter-se no litoral do norte da África, ocupado por ingleses,
que se preparam para a anexação do Egito; por italianos que há pouco cometeram
a rapina da Líbia; por franceses que se assenhorearam definitivamente de
Marrocos, e por espanhóis que se não deixaram desalojar do resto ocidental
dessa costa, não há de ser em três Estados da Federação Brasileira que virá com
êxito expandir o seu território colonial.
Os erros, e não são só
da República, por meio dos quais foram entregues ao estrangeiro tamanhas zonas
brasileiras, com a indiferença de um fatalismo muçulmano e com os quais
permitimos que em terras brasileiras se estabelecessem núcleos numerosos de uma
só nacionalidade que se está constituindo em Estado no Estado, expelindo a
língua do Brasil de sua própria casa redigindo documentos oficiais em língua
alemã, criando e mantendo escolas para o ensino exclusivo do alemão,
aparelhando escolas de tiro só para alemães, podem ainda ser remediados por um
milagre de patriotismo.
Não é possível que só
nos reste escolher a maneira pela qual devemos ser comidos; se de forno com
recheio à la Farquhar, se em pedaços e de molho pardo à la James Bryce.
Para muitos o que é
fora de dúvida é que seremos comidos.
(A situação
internacional do Brasil, 1913.)
*
Jornalista, advogado, diplomata, romancista, ensaísta, poeta e teatrólogo,
membro da Academia Brasileira de Letras.
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