Marialva Sertanejo
* Por
Gustavo Barroso
Um touro grande, cor
da treva, de aguçadas pontas ligeiramente recurvas. Chamava-se Azulão, como o
pássaro do mesmo nome, que também e negro. Talvez o apelido lhe viesse dos
reflexos espelhantes do pêlo à luz do sol, que às vezes davam levemente a
impressão do azul. Animal bonito e, sobretudo, famoso. Conhecia-o de nome o
sertão todo, como o mais terríivel e mocambeiro novilho dos que o coronel Paulo
deixava amontados pelas senotas, a fim de prometer prêmios aos vaqueiros que os
trouxessem mortos ou vivos, quando o tempo, a perseguição e a liberdade os
tornavam verdadeiras feras.
Todos os anos, após a
ferra do gado, o grande fazendeiro escolhia um novilhote entre os mais
possantes e dava ordem para abandoná-lo nas catingas aos seus instintos. O
animal ficava selvagem e ele tentava a vaqueirama das ribeiras próximas a
dar-lhe caça. O vaqueiro que lhe trazia a "bassoura" do barbatão
morto a tiros, ou o próprio pegado a laço derrubado a "mussica" recebia
cinco patacões de velha prata portuguesa e divertia-se em grande festa, na
fazenda, durante a qual os melhores cantadores o louvavam ao pé da viola. Havia
quarenta anos que o coronel se dedicava a esse folguedo, começado logo que
herdara as terras do pai, aos trinta de idade. Mas nunca espicaçara os
sertanejos dos arredores atrás de bicho mais terrível que o Azulão.
Aquele touro bravo era
o pior de que havia notícia nas tradições do sertão. Rápido como o pensamento e
valente como as armas, já matara dois cavalos de campo e estripara um vaqueiro.
O coronel Paulo prometera vinte patacões a quem o trouxesse vivo ao seu curral,
cuja cerca de pau a pique, no alto dum teso, se mirava nas águas vagarosas do
rio.
Dois vaqueiros irmãos,
os melhores campeadores da região, Matias e Teófilo Sussuarana, puseram-se-lhe
no piso, deram-lhe quedas e mais quedas nas várzeas para onde o tangeram e,
depois de o fatigarem, o laçaram, trazendo-o para o curral, de madrugada,
dificilmente, enleado em peias, de "máscara", e chocalho, para maior
vergonha de sua denota.
Mal o dia amanheceu,
preveniram o coronel que o Azulão estava ali. Saiu de casa radiante, os lábios
vermelhos sorrindo entre as revoltas barbas brancas, e foi olhar a fera cativa,
encerrada no menor dos currais de apartação, laivado o dorso negro de
arranhões, olhos afuzilando por trás do couro cru da "màscara",
escarvando o chão, enervado pelo continuo tinir do chocalho aviltante. E deu
ordem para se convidar muita gente à festa que celebraria, desde a tarde até alta
noite, o triunfo dos dois rapazes.
Horas depois, à sombra
das árvores do terreiro, não havia mais lugar para amarrar cavalos. Celeremente
se espalhara a nova da captura do animal e toda a vizinhança vinha ver o
"fama" da ribeira.
O vento da tarde começara
a rumorejar devagarinho na folhagem dos comarus e dos frei-jorges robustos, que
circulavam o pátio, e a ardência do sol diminuíra, quando o cativo começou a
dar sinais da terrível fúria. Passara o dia sempre escarvando o solo, porém
embezerrado, acuado a um canto, olhos em brasa. Agora, não. Arremetia contra os
"varaus" da porteira, agitava o "cupim", marrava a cerca,
mugia lentamente, babava-se, estremecia todo, a complicada musculatura sacudida
em crispações fugazes e violentas como descargas elétricas. E os olhares
humilhantes de dezenas de vaqueiros, trepados nos moirões, excitavam
magneticamente o animal prisioneiro.
O fazendeiro
contemplava os progressos rápidos daquela raiva e, de repente, obedecendo ao
seu temperamento estouvado e ardente, gritou:
- Duzentos mil-réis
aos que pegarem o bicho a unha, dentro do curral!
A soma era por demais
tentadora. Aqueles homens nunca tinham visto tanto dinheiro. Todos os olhos
faulharam de cobiça. O vaqueiro da casa fez correr alguns paus da porteira,
convidando sorridente:
- Vamos! Quem é homem
para entrar?
O Azulão pareceu
adivinhar o que contra ele se preparava. Recuou, bebendo mais, até o fundo do
curral e ficou novamente imóvel, pontas em riste, sacudido pelos estremeções
nervosos. Sentia-se do longe o fogo do seu olhar.
Os vaqueiros
silenciosos, emocionados, olharam-no e não tiveram coragem de entrar. Então, o
velho apregoou, sorrindo:
- Dou os mesmos
duzentos mil-réis a quem o atacar peito a peito e o matar a faca!
Outra vez, o vaqueiro
da casa fez o convite irônico:
- Vamos! Quem é homem
para entrar?
Os vaqueiros levaram
as mãos, maquinalmente, aos cabos das afiadas parnaíbas e logo as deixaram
cair, sem ânimo de dar um passo. Os mesmos que o tinham perseguido e pegado no
mato não ousaram mais que os outros. No campo, na primeira luta, o touro não
tinha ainda a fermentada cólera de agora. Vendo aquela indecisão geral, o
coronel encolheu os ombros e falou, com desprezo:
- Vocês são todos uns
maricas! Súcia de medrosos!
Foi como uma chicotada
que os vergastasse a todos, nas faces! Aqueles homens rudes, de rostos
abaçanados sob os grossos chapéus de couro, não se atiraram ao insultador
detidos pelo respeito feudal ao ancião, senhor da terra e do gado. Porém um,
mais jovem e audaz, replicou:
- Se vosmicê não entra
também, coronel, é tão medroso como nós.
O velho caminhava já
para casa, em cuja alpendrada a mulher e a filha o esperavam para jantar.
Deteve-se e fulminou o rapaz com um olhar formidável, arrancou do cinto do
homem que lhe ficava mais próximo a comprida faca de arrasto e disse,
serenamente, ao seu vaqueiro:
- Jerome, abra a
porteira!
Fez-se grande
silêncio. Ao fundo do curral, o touro negro arfava. E diante dos vaqueiros,
respeitosamente descobertos, aquele homem de setenta anos de idade, de longas
barbas brancas, penetrou sem medo no recinto temível!
A mulher e a filha
deitaram a correr, gritando, da casa para os currais; mas, quando ali chegaram,
já ele estava no meio do cercado, de faca nua na mão, olhando corajosamente o
touro. Ninguém se atrevia a dar uma palavra. Pareciam suspensas as respirações
e os arrulhos distantes das juritis ecoavam como gemidos fúnebres.
O Azulão distendeu a
poderosa musculatura num salto felino sobre o fazendeiro, que evitou o bote,
pulando de lado e golpeando-lhe com a faca o pescoço de aço. Num repelão, o
monstro voltou à carga. Já o velho se encostava à cerca, defendendo as costas.
Veio sobre ele numa investida delirante, não lhe dando tempo a esquivar-se.
Houve um arrepio; depois, um grito de horror da assistência inteira.
O animal cravara as
pontas finas no ventre do ancião, comprimindo-o de encontro aos moirões.
Viu-se-lhe o braço nervudo erguer e abaixar a lâmina espelhante. Então, ficaram
imóveis o homem e o touro.
Todos precipitaram-se
no cercado e, quando se aproximaram do grupo petrificado, viram que o coronel
estava morto, trespassado pelos chifres, cujas pontas fundamente se cravaram
nos madeiros. Por isso, mantinha-se de pé o imenso corpo do Azulão; mas as
pernas traseiras pouco a pouco cediam até que a vasta mole de carne e músculos
abateu de vez. A facada do fazendeiro fora certeira e mortal: penetrara em
cheio no cabelouro!
(Alma sertaneja, 1923).
*
Professor, ensaísta e romancista, membro da Academia Brasileira de Letras.
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