Histórias que trazem a noite
Os chamados “contos de fadas” são as primeiras lições
práticas de Literatura que temos – em uma época em que sequer intuímos no que
consiste essa atividade – mesmo que elementares e incipientes. Refiro-me,
claro, aos que têm e tiveram infâncias “normais”, em lares bem estruturados, em
que prevalecessem o respeito mútuo e o amor entre seus integrantes. Desconfio,
todavia, que sete entre dez crianças no mundo, na atualidade, não privem desse “privilégio”,
que deveria ser norma, mas não é. Há milhões, quiçá bilhões delas que
sobrevivem por puro instinto, geradas de forma irresponsável e largadas nas
ruas e que, claro, jamais terão sequer ligeira noção do que é amor. Bem, o
assunto que trago à baila não é bem este. Não me refiro, pois, a estes meninos
e meninas que, desconfio, sejam hoje maioria, num mundo perverso e
superpovoado, de mais de 7 bilhões de habitantes (estimativas dão conta que a
população mundial já passa dos 7,3 bilhões, e segue aumentando, à razão de
cinco nascimentos por minuto).
Meu primeiro contato com lições de moral, com o eterno
conflito entre o bem e o mal, se deu, justamente, ouvindo os tais “contos de fadas”. E não somente os
tradicionais, de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm, mas os nossos,
brasileiros. Afinal, a obra infantil de Monteiro Lobato não é mais do que
imenso conjunto de “contos de fadas”, mesmo que o escritor de Taubaté não haja
recorrido a nenhuma delas. Ademais nem todas as histórias do gênero conheci
através da leitura de livros, feitas pelos adultos. Muitas foram apenas “contadas”
– com os devidos acréscimos, adaptações e supressões feitos pelos respectivos
narradores, justificando o dito popular do “quem conta um conto, aumenta um
ponto”. Hoje concluo que esses momentos mágicos, em que pude dar livre curso à
imaginação, nas asas da fantasia, são algumas das melhores coisas que me
aconteceram. Nem sempre essas histórias eram contadas pelos adultos. Quando era
por eles, em geral tais narrativas ocorriam na hora de dormir e embalavam meus
sonhos infantis com visões de príncipes, princesas, castelos, bruxas, fadas,
gigantes, anões, heróis e vilões e vai por aí afora.
Quando estive internado em colégio interno, por volta dos
dez anos de idade, entre os vários colegas de internato, havia alguns que
conheciam, de cor e salteado, esses tantos contos. E na hora de nos recolhermos
para dormir, narravam-nos, na sua versão pessoal, e aos cochichos para não
atrair a atenção dos monitores, até que narrador e ouvintes pegássemos no sono.
Jamais esqueci e nem esquecerei esses momentos sublimes enquanto viver. Essas
lembranças (preciosas) vieram à tona, hoje, ao ler esta declaração da escritora
e psicanalista analítica norte-americana Clarissa Pinkola Estés, que escreveu: “Sempre
que se conta um conto de fadas, a noite vem”. Claro que eles podem ser contados
em pleno dia. Ouvi, por exemplo, muitas dessas histórias, principalmente as
ligadas às tradições de nossos indígenas, em sala de aula, na voz das saudosas
professorinhas Dona Helena e Dona Esther Freeman. No meu tempo, as mestras não
eram, ainda, chamadas de “tias”, como hoje.
E quem é essa Clarissa Pinkola Estés, que me impressionou
tanto, e que suscitou tantas lembranças? Bem, é uma escritora de fato
impressionante, de 70 anos (fará 71 em 27 de janeiro de 2016), de ascendência
mexicana, descendente, todavia, de refugiados suábios. Muito do que escreveu
tem nítida influência de suas origens familiares europeias, já que a imensa
maioria dos contos de fadas procede do Velho Continente, alguns antigos, muito
antigos, antiqüíssimos, de cinco, seis ou mais séculos ou sabe-se lá quantos.
Seus livros mais conhecidos, ambos traduzidos para o português e lançados no
Brasil, são: “O jardineiro que tinha fé: uma fábula que não pode morrer nunca
mais” e “Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da
mulher selvagem”. Recomendo ambos aos meus pacientes e interessados leitores.
Há quem condene que se contem tais histórias às crianças,
argumentando que elas as “alienam”, por tratarem de um mundo de fantasias que
não existe. Tolice! É coisa de quem não sabe o que diz e que se mete a dar “lições
de conduta”, mas que desconhece o que é melhor para ele, quanto mais para os
outros. A estes, Clarissa responde, em um de seus livros: “Contar histórias é
trazer à baila, trazer à tona. Não é uma atividade inútil. Embora haja o
intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam histórias, como presentes
mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se conhecer bem. Desenvolveram
um relacionamento de parentesco, se ele já não existia. E é assim mesmo que
deve ser”. E ela, convenhamos, sabe o que diz. Afinal, trata-se de uma
psicanalista, cujo “campo de trabalho” é a complexa mente humana.
Por isso, paciente e sábio leitor, não prive seus filhos, ou
netos, ou sobrinhos, ou quaisquer crianças com as quais conviva, dessas antiqüíssimas
aulas práticas de moral, sem o ranço que esta costuma ter, mediante histórias
tão singelas e puras, em que o bem finda invariavelmente por triunfar sobre o
mal, mesmo que na prática cotidiana não seja o que ocorra usualmente. Não
permita que os dias dos pequeninos se prolonguem indefinidamente, sem trégua
para retemperarem forças e para o benigno descanso físico e mental. Porquanto,
como Clarissa Pinkola Estés assegura, do alto de sua sapiência, “sempre que se
conta um conto de fadas, a noite vem”.
Boa leitura.
O Editor.
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Tão bom, tão maravilhoso esse contato com o mundo mágico. Eu tive acesso a todas as leituras citadas. Foi muito bom vivê-las.
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