quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Conseguindo informações a saca-rolhas


* Por Mara Narciso


Viver é perigoso”, disse Guimarães Rosa várias vezes pela boca de Riobaldo. Mas a existência não deverá ser inútil. Numa manhã, uma senhora entra em meu consultório médico. Está sozinha. Tem a pele queimada e marcada pelo sol. Veste-se de forma singela com um vestido verde e traz um sorriso discreto. É recebida de pé com um bom dia sincero e é convidada a se sentar. Sento-me em seguida. A ficha que está a minha frente diz que ela se chama Joana e mora na zona rural de outro município. É lavradora, ainda na ativa. A idade, como é habitual nesses casos, marca bem menos anos do que ela aparenta.
- Em que posso ajudá-la, Joana?
- ?
- Qual é o motivo da consulta?
- É os exames.
- Deixe-me vê-los.
- Saí tão depressa que esqueci tudo lá. Moro distante. Tive de pegar o ônibus depois de um pedaço de pé. Saí de casa às 2 da manhã.
- O que você se queixou ao médico que pediu esse exame?
- Queixei nada não senhora.
- O médico que viu o exame e mandou você vir para cá falou o que era?
- Falou não senhora.
- Mandou algum papel, algum encaminhamento?
- Mandou não.
- O exame foi feito em algum laboratório daqui?
- Não. Foi de lá mesmo.
- É que se tivesse sido feito aqui eu poderia ligar e perguntar os resultados.
Então vou fazendo perguntas genéricas sobre fome, sono, intestino, urina, peso, histórico pessoal e familiar e nada importante foi detectado. Ela não tem queixas específicas.
- Você está em uso de algum remédio contínuo?
- Tomo sim.
- Qual é? Tem a receita aí com você?
- Não sei o nome não senhora. É muito difícil pra mim, que não tenho leitura. A receita ficou lá em casa.
- Mas é para quê o remédio? Para pressão, colesterol, diabetes?
- É para pressão. Eu pego no posto de saúde.
- Tem algum telefone celular que eu possa ligar para saber dos remédios e dos exames? Não teria alguém em sua casa que pudesse ler os nomes e os exames para mim?
- Tem minha menina, mas ela trabalha e o exame não tá com ela.
- Vou examinar você, Joana. Sobe na balança, por favor. Descalça.

O exame físico estava dentro da normalidade, inclusive o peso e a pressão. Explico a ela, que parece interessada:
- Está normal, Joana. Não deve ser nada urgente, talvez uma doença inicial, pouca coisa. Queria adiantar alguma explicação para evitar que perdesse a viagem, mas, de todo modo será preciso você voltar ou alguém vir com os resultados para eu ver o que será preciso fazer. Caso se lembre de alguma coisa, telefone ou mande o recado.

Em seguida me levanto e levo a paciente até a porta. Ela sai me olhando meio sem graça. Estamos ambas decepcionadas.

Uma consulta médica pode ser frustrante para as duas partes, e não é raro que isso aconteça, porque muitos momentos não têm aplausos nem glórias.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



2 comentários:

  1. Que luta inglória, não? Sem jogo de palavras, quem tem que ser muito paciente é o médico... Abraços, Mara.

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    1. Esse é o outro lado da consulta, uma aberração, fruto do excesso de exames, da não conversa e do não exame físico.

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