Conseguindo informações a saca-rolhas
* Por
Mara Narciso
“Viver é perigoso”,
disse Guimarães Rosa várias vezes pela boca de Riobaldo. Mas a existência não
deverá ser inútil. Numa manhã, uma senhora entra em meu consultório médico.
Está sozinha. Tem a pele queimada e marcada pelo sol. Veste-se de forma singela
com um vestido verde e traz um sorriso discreto. É recebida de pé com um bom
dia sincero e é convidada a se sentar. Sento-me em seguida. A ficha que está a
minha frente diz que ela se chama Joana e mora na zona rural de outro
município. É lavradora, ainda na ativa. A idade, como é habitual nesses casos,
marca bem menos anos do que ela aparenta.
- Em que posso
ajudá-la, Joana?
- ?
- Qual é o motivo da
consulta?
- É os exames.
- Deixe-me vê-los.
- Saí tão depressa que
esqueci tudo lá. Moro distante. Tive de pegar o ônibus depois de um pedaço de
pé. Saí de casa às 2 da manhã.
- O que você se
queixou ao médico que pediu esse exame?
- Queixei nada não
senhora.
- O médico que viu o
exame e mandou você vir para cá falou o que era?
- Falou não senhora.
- Mandou algum papel,
algum encaminhamento?
- Mandou não.
- O exame foi feito em
algum laboratório daqui?
- Não. Foi de lá
mesmo.
- É que se tivesse
sido feito aqui eu poderia ligar e perguntar os resultados.
Então vou fazendo
perguntas genéricas sobre fome, sono, intestino, urina, peso, histórico pessoal
e familiar e nada importante foi detectado. Ela não tem queixas específicas.
- Você está em uso de
algum remédio contínuo?
- Tomo sim.
- Qual é? Tem a
receita aí com você?
- Não sei o nome não
senhora. É muito difícil pra mim, que não tenho leitura. A receita ficou lá em
casa.
- Mas é para quê o
remédio? Para pressão, colesterol, diabetes?
- É para pressão. Eu
pego no posto de saúde.
- Tem algum telefone
celular que eu possa ligar para saber dos remédios e dos exames? Não teria
alguém em sua casa que pudesse ler os nomes e os exames para mim?
- Tem minha menina,
mas ela trabalha e o exame não tá com ela.
- Vou examinar você,
Joana. Sobe na balança, por favor. Descalça.
O exame físico estava
dentro da normalidade, inclusive o peso e a pressão. Explico a ela, que parece
interessada:
- Está normal, Joana.
Não deve ser nada urgente, talvez uma doença inicial, pouca coisa. Queria
adiantar alguma explicação para evitar que perdesse a viagem, mas, de todo modo
será preciso você voltar ou alguém vir com os resultados para eu ver o que será
preciso fazer. Caso se lembre de alguma coisa, telefone ou mande o recado.
Em seguida me levanto
e levo a paciente até a porta. Ela sai me olhando meio sem graça. Estamos ambas
decepcionadas.
Uma consulta médica
pode ser frustrante para as duas partes, e não é raro que isso aconteça, porque
muitos momentos não têm aplausos nem glórias.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Que luta inglória, não? Sem jogo de palavras, quem tem que ser muito paciente é o médico... Abraços, Mara.
ResponderExcluirEsse é o outro lado da consulta, uma aberração, fruto do excesso de exames, da não conversa e do não exame físico.
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