Como pássaros
Quem é o “autor”, de fato, de um poema: o que o compõe ou o
que se identifica com seu conteúdo, com sua mensagem, com sua beleza e transcendência,
ou seja, o leitor? A pergunta, à primeira vista, parece absurda, infantil,
surreal, mas talvez não o seja. Ainda no terreno das aparências, a resposta “parece”
rigorosamente óbvia. Tão óbvia que os que foram provocados pelo questionamento
se recusam a dá-la, limitando-se, não raro, a um riso de galhofa, se tanto. Não
é, porém, o que muitos poetas pensam (certamente, a minoria, mas gente
realmente do ramo, com obra poética consagrada e imortalizada no imaginário
popular). Para muitos, o leitor, que se sensibiliza com um poema, é o autor de
fato dele. O poeta, no caso, é “apenas” uma espécie de instrumento para que ele
se materialize. Eu não diria tanto. Diria, porém, que é co-autor.
Claro, não estou pensando no aspecto, digamos, comercial da
obra, nos direitos autorais. Por este prisma, o poeta que o compõe, sem dúvida,
é o legítimo autor (a menos que tenha plagiado o poema, masd este é uma outra
história). Jorge Luís Borges foi um dos tantos que manifestaram crença nessa
co-autoria espiritual de uma composição poética. E expressou-se dessa forma
sobre essa crença: “Creio que os escritores somos amanuenses de algo secreto,
que se pode chamar, segundo a tradição homérica, de ‘musa’; segundo a tradição
hebréia, ‘ruach’, o ‘espírito’; ou segundo a fria mitologia moderna, ‘inconsciente’
ou ‘subconsciente’; ou segundo a bela expressão do grande poeta irlandês
William Butler Yeats, a ‘grande memória’”. Pois é, somos co-autores dos
magníficos poemas que nos encantam, emocionam, sensibilizam e, em alguns casos,
nos levam às lágrimas.
Nem toda composição poética, frise-se, tem esse poder de
comoção, de encantamento, de cumplicidade. Convenhamos, são minoria. Não sei se
você, leitor poeta, se sente da mesma forma como me sinto ao devorar
determinados poemas de extrema beleza e verdade, mas eu identifico-me muito
mais com eles do que com os que componho. Ao compor, sinto-me ‘usado’, mero
veículo para concretizar algo que sempre existiu, posto que sem forma, no
inconsciente coletivo. Há uma infinidade de poemas que sinto que são
legitimamente meus, que expressam com exatidão meus pensamentos e emoções,
embora não seja seu verdadeiro autor. Sinto-me, todavia, co-autor.
Umberto Eco, embora não seja poeta, escreveu o seguinte
sobre esse sentimento, que sugeriu também partilhar: “O fato estético é algo
tão evidente, imediato e indefinido quanto o amor, o gosto da fruta, a água.
Sentimos a poesia como sentimos a presença de uma mulher, uma montanha ou uma
baía. Se ela é sentida de imediato, por que diluí-la em outras palavras, que
certamente serão mais frágeis do que nossos sentimentos?”. Sim, por que? Para
que se torne concreta e partilhável, provavelmente. E Eco arrematou: “Eu
definiria o efeito poético como a capacidade que um texto oferece de continuar
a gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo”.
O poeta francês dos séculos XIX e XX, Paul Claudel (nome
artístico de Louis Charles Athanaïse Cécile Cerveaux Prosper), foi mais
específico: “O poema não é feito dessas letras que eu espeto como pregos, mas
do branco que fica no papel” Ou seja, é
feito da reação que causa no espírito de quem o lê, ou mais especificamente, de
quem o “sente”, já que poesia não é para ser simplesmente lida, mas sobretudo
sentida. Cabe aqui o que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche escreveu, em
outro contexto (que citei em um comentário específico sobre Filosofia), mas que
cabe a caráter neste mesmo assunto: “Os leitores extraem dos
livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco
das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno”.
Os que se “encantam” com
determinados poemas, são as diligentes abelhinhas, que extraem das corolas a
essência da doçura. Já os que são indiferentes à poesia (e aos seus encantos,
evidentemente) são perigosas aranhas que extraem das mais delicadas flores das
emoções apenas o veneno, se tanto, para inocular nos incautos. Em geral, aliás,
não são nem mesmo os aracnídeos citados por Nietzsche. Ficam, simplesmente,
indiferentes à poesia (e a toda forma de beleza), como máquinas, como robôs,
como insensíveis zumbis, mortos-vivos no que se refere a sentimentos. E,
convenhamos, há muitíssimas pessoas assim.
Contudo, a melhor
explicação sobre o assunto foi a dada por Mário Quintana. E não a deu em
nenhuma crônica, declaração bombástica ou mesmo entrevista, mas no poema
abaixo, que partilho com você, amável leitor, e do qual me sinto “co-autor”
espiritual, que leio, releio, sei de cor e salteado e repito a todo o momento,
para mim e para terceiros:
Como pássaros
“Os poemas são pássaros
que chegam não se sabe
de onde e pousam no
livro que lês.
Quando fechas o livro,
eles alçam vôo como de
um alçapão.
Eles não têm pouso nem
porto,
alimentam-se um instante
em cada par de mãos e
partem.
E olhas, então, essas tuas
mãos vazias, no
maravilhado espanto de
saberes que o alimento
deles já estava em ti”.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Danada inspiração.
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