segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Lencinhos de adeus


* Por Daniel Santos


Ainda ontem, ela engatinhava pela casa, encardia paredes, puxava a barba do tio e demais travessuras que encantavam a família – uma família quase desfeita, mas logo reunida quando a mãe empinou barriga.

Pois a lindinha nasceu e logo se aninhou no colo do pai que queria um garotão com quem jogar bola, mas deslumbrou-se ao vê-la emergir do ventre materno. Amor à primeira vista, do qual ele não se sabia capaz.

E tanto se apegou à filha que surpreendeu a todos ao dizer “gosto demais dela, queria que tivesse saído de dentro de mim”. Tal não chegou a escandalizar, que tamanho achego era claro; para ela, principalmente.

Mas, se ainda ontem engatinhava, agora ... Ah, noutro dia comprou o primeiro sutiã! Ela e a mãe festejaram. O pai agoniou-se: a filha não era mais criança, logo o trocaria por um namorado! Daí, as insônias.

Noite dessas, encontrou na área de serviço calcinhas dela ainda de molho. Com surpreendente desvelo, pendurou-as no varal. Ali, trêmulas ao vento – ele entendeu, emocionado-, acenavam como lencinhos de adeus.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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