sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Jornal de Timon Prospecto


* Por João Francisco Lisboa


Desde a origem do mundo, o bem e o mal, em luta incessante e permanente, pleiteiam o seu domínio. Sem dúvida, os dois princípios opostos, inerentes à natureza do homem, andam sempre com ele de companhia; mas segundo as resistências e obstáculos, o favor e a indulgência que encontram, ora prepondera o mal, ora o bem, revelando-se sob aspectos diferentes, e sofrendo várias modificações, conforme os tempos e os lugares, as sociedades em massa, ou os indivíduos isolados sobre que atuam.

A história do gênero humano é a confirmação plena desta verdade.

O obscuro canto do mundo que habitamos não podia escapar à sorte comum, e a época, que nos coube atravessar, é uma daquelas em que o mal tem decidida preponderância; não principalmente o mal terrível e atroz, o sangue, o incêndio, as devastações e os extermínios, cuja narração enche tantas vezes as páginas mais grandiosas e formidáveis da história; sim o mal vil e desprezível, o lodo, a baixeza, a degradação, a corrupção, a imoralidade, toda a casta de vícios enfim, tormento inevitável dos ânimos generosos que os cegos caprichos do acaso designaram para espectadores destas cenas de opróbrio e de dor.

 Timon, antes amigo contristado e abatido, do que inimigo cheio de fel e desabrimento, empreende pintar os costumes do seu tempo, encarando o mal sobretudo, e em primeiro lugar, senão exclusivamente, sem que nisso todavia lhe dê primazia, ou mostre gosto e preferência para a pintura do gênero. Ao contrário, faz uma simples compensação, porque o mal, nas apreciações da época, ou é esquecido, ou desfigurado; esquecido, quando para o louvor se inventa o bem que não existe, ou se exagera o pouco bem existente; desfigurado, quando para o vitupério se carregam as cores do mal, e ele se imputa e distribui com parcialidade e exclusão, sem escolha, crítica, ou justiça.

Timon enche a sua obscura carreira em um obscuro e pequeno canto do mundo; e apesar do pouco aviso e desacordo que devera ser o resultado do seu ódio pretendido ao gênero humano, ou pelo menos à geração presente, nem por isso ignora o que não é para todos o dizer tudo, em todo tempo e em todo lugar. A pintura dos costumes privados, que aliás demandaria um quadro vastíssimo, não entra como elemento principal no plano deste trabalho; e a razão é que numa cidade pequena, em que todos se conhecem, e todas as vidas são conhecidas, por mais que Timon se esmerasse em traçar cenas vagas e gerais, e apontasse com a intenção só à emenda e à correção, nem por isso a malevolência, e sobretudo a ignorância e o mau gosto, deixariam de nelas rastear alusões mais ou menos claras e positivas, a pessoas e ações determinadas. Assim, se não pela intenção própria, certamente pela malícia e prevenção alheia, um quadro geral se converteria numa difamação pessoal, e em vez de cenas públicas, ter-se-ia a exposição do sagrado lar doméstico. Timon pois, prudente e acautelado quanto for possível, sem renunciar de todo a um assunto tão rico, e que de si mesmo está convidado à exploração, há de nada menos empregar toda a sua atenção para evitar o perigo, e não cair em um dos vícios que mais pretende notar e repreender.

Mas o seu fim primário ficará sendo sempre a pintura de nossos costumes políticos; e como nesta terra a vida e atividade dos partidos se concentra principalmente nas eleições, transformado assim um simples meio em princípio e fim de todos os seus atos, as cenas eleitorais descritas sob todas as suas relações e pontos de vista imagináveis, encherão uma grande parte das páginas do jornal. A nossa própria história nesta parte será precedida de uma breve notícia sobre os costumes eleitorais de alguns povos antigos e modernos; o leitor há de encontrar nos ditos rasgos, ações e personagens de Atenas, Esparta e Roma, matéria para sisudas reflexões e picantes aplicações; e comparando uns e outros tempos, vendo a pasmosa semelhança com que os fatos se reproduzem, depois do intervalo de uns poucos de séculos, talvez venha concluir que este velho mundo, na sua última decrepitude, torna aos sestros e desmanchos da primeira infância e mocidade.

Quando do passado lançar a vista sobre o presente, acostumado a ler diatribes apaixonadas e infiéis, encontrará pelo menos o interesse da novidade em uma narração exata e imparcial dessas cenas, ora animadas, tumultuosas, e pitorescas, ora frias, descoradas, e silenciosas como os túmulos, e onde se desdobrarão sucessivamente às suas vistas o nascimento e organização dos nossos partidos, a sua marcha, a sua queda e dissolução, as exclusões, as depurações, as ligas, as cisões, as lutas do governo e da oposição, os jornais, as circulares, a correspondência privada, os clubes, as procissões, os festins, as chapas, as listas, as urnas, as apurações, a falsificação em todos os seus graus, a calúnia e a injúria, a raiva e a violência, o tumulto e a desordem, as vias de fato, o cacete, a pedra, e ainda, se tanto é mister, o ferro e o fogo, rematando tudo pelas escolhas mais vergonhosas e deploráveis, se é que a coisa sofre o nome, e se escolhas se pode chamar o resultado das tantas infâmias, do puro acaso e do capricho.

E como consequência destas paixões delirantes, destes ódios acesos e travados em peleja formal, a degradação de todos os caracteres, a cobiça desordenada, a avidez de distinções, a ambição de cargos elevados, o furto, o roubo, o estelionato, os assassinatos, as apostasias, as traições, a difamação erigida em sistema, a miséria real rebuçada por aparatosas ostentações, o horror ao trabalho e ao estudo, a ignorância, a presunção.

Esta é a vida ordinária (ninguém pasme), regular, ou normal, como se usa chamar agora; mas para suavizar-lhe a monotonia, e matizá-la, Timon há de achar amplos recursos em todo o gênero de opressões, nas demissões, nos processos, nos recrutamentos; virão depois as revoltas, as rebeliões, as guerras civis ou, melhor, sociais; as repressões sanguinolentas e inexoráveis, a impunidade, as anistias.

O estudo e exame da nossa vida política, ou antes, da vida dos nossos partidos pretendidos políticos, e o da sua influência sobre os costumes e a moral pública e privada já é de si um assunto tão vasto como elevado, e para o qual se requeria uma capacidade e experiência, e sobretudo, um ócio e folga que o pobre Timon não tem à sua disposição; mas se lisonjear-se de que há de desempenhar, não diz já cabalmente, mas ao menos de um modo tolerável, esta grande tarefa, ousa todavia arriscar a promessa de fazer algumas considerações acerca das diversas raças em que se divide a nossa população, sobre a sua condição, índole, costumes, sobre o seu passado, e o seu porvir enfim. Será talvez oportuno explorar então alguns pontos da história antiga e moderna deste povo, pequeno e obscuro sim, se o comparamos com tantos outros, porém o maior, e o mais celebrado que pode haver, para um grego nascido e criado nas históricas margens do soberbo Itapucuru. Certas variedades, acomodadas ao espírito geral da publicação, e algumas curiosas notícias estatísticas, colhidas de documentos esparsos onde, sobre as dificuldades de se acharem, pouco desafiam a atenção, completarão o trabalho, e encherão os derradeiros números do Jornal de Timon.

O leitor perguntará agora naturalmente a que propósito este nome de Timon? Que sei eu? Esse nome, ilustrado por um dos mais belos talentos da literatura moderna, pertenceu na antiguidade a um homem singular e estranho que, azedado pela injustiça e ingratidão que com ele usaram alguns dos seus contemporâneos, votou um ódio tão entranhável ao gênero humano, e de maneira o reputava entregue aos crimes e aos vícios, que se pagava mais do desprezo que da estima dos homens. Referem-se dele muitos ditos, uns agudos e felizes, outros apenas saturados de fel e ódio. Jantando certo dia, não com um amigo (que os não tinha), mas com o único homem com quem fazia alguma convivência, exclamou este: Ó que delicioso jantar! “Certamente, acudiu Timon, se tu não participasses dele.” Alcibíades acabava de orar, e obtivera do povo a aprovação de projetos favoráveis à sua ambição, porém nocivos ao estado. Timon, que esquivava a todo o mundo, adiantou-se para ele, e tomando-lhe amorosamente as mãos “Ânimo (lhe diz) meu filho! Se continuas por este teor, breve arruinarás a república.” Em outra ocasião subiu à tribuna, e dirigindo-se ao povo que o escutava estupefato e silencioso, pelo desusado da cena: “Atenienses (exclamou), possuo algumas braças de terreno, em que pretendo edificar. Há nele uma figueira em que alguns honrados cidadãos se têm enforcado; e como tenho de derribá-la, faço aviso aos que se quiserem utilizar dela, para que se dêem pressa, e não percam um só instante.”

Estes e outros rasgos valeram-lhe a aversão geral, e o sobrenome de Misantropo. Timon (observa Barthélemy, Viagens de Anacharsis Junior) viveu em um tempo em que os costumes e as leis antigas lutavam com as paixões ligadas para destruí-los. Como se vê, as épocas de transição remontam à mais alta antiguidade. São épocas em verdade perigosas para as nações; nos caracteres fracos, e amigos do repouso, as virtudes são indulgentes e se amoldam às circunstâncias; nos caracteres vigorosos, porém, redobram de energia, e se tornam às vezes odiosas por uma inflexível severidade. Timon era homem de engenho, amigo das letras não menos que da virtude; mas azedado pelo triunfo e preponderância do crime e do vício, tornou-se tão rude de maneiras e linguagem, que alienou todos os espíritos. Alguns contendem ainda que, pelo seu zelo exagerado, perdeu ele a ocasião de contribuir para o bem; todos porém são acordes em que uma virtude ríspida e intratável ocasiona menos perigos que uma covarde e vil condescendência.

Os meus honrados colegas do jornalismo, e todos esses grandes publicistas que fatigam o céu e a terra para provar que esta em que estamos é a verdadeira época de transição, esses nos dirão se a Providência andaria bem ou mal se hoje suscitasse um novo Timon da verdadeira raça das fúrias, com que as pontas viperinas do azorrague vingador, lacerasse sem piedade os crimes e os vícios que a desonram.

De mim o digo que, sem aspirar ao renome e glória do espirituoso Timon parisiense, pois me falece cabedal e engenho para poder, não já competir com ele, mas seguir de longe o seu rastro luminoso, espero ao menos não ser acusado da feroz misantropia do ateniense. Se os meus quadros forem argüidos de sombrios e carregados em demasia, irei buscar a sua justificação no próprio jornalismo contemporâneo, onde a cada passo deparo as pinturas mais tenebrosas e medonhas da depravação e opróbrio dos nossos tempos. Toda a diferença está em que o jornalismo político denuncia o mal acidentalmente, segundo as necessidades da ocasião, em ódio deste ou daquele partido, e de certas e determinadas pessoas, imputando cada qual e repreendendo nos outros o que nega, desculpa ou atenua em si; ao passo que Timon, alheio a todas as parcialidades, tão distante do ódio e da amizade como do temor e da esperança, toma por empresa e tenção particular sua fazer uma pintura sistemática, severa e imparcial.

 Timon vai escrever sem pretensões de qualidade alguma, não um livro, mas um simples jornal, e ainda menos que isso um jornal de província de segunda ordem; e todo o seu empenho será expor com singeleza e lisura o que a observação e a experiência, ajudadas de alguns poucos e interrompidos estudos, lhe têm podido ensinar. Ninguém presuma, pois, que nestes escritos pretende inculcar profundeza, ou originalidade; a primeira destas qualidades só a possuem os gênios privilegiados; quanto à segunda, aspirar a ela, com forças tão minguadas, tanto monta como aspirar a uma quimera. O mundo conta mais de seis mil anos de idade, segundo uns, e outros há que lhe dão não menos de sessenta mil. Em qualquer destas duas extremas decrepitudes, já se não pode contestar a verdade daquela famosa sentença: Nihil sub sole novum. A única invenção hoje possível consiste toda na felicidade e oportunidade da aplicação; e ainda isto mesmo não é dado a todos. Timon extrata e copia, transformando e aplicando as cópias às coisas e aos homens do seu tempo. Nada mais, nada menos.

Colherá ele, deste seu intento, os frutos que imagina, isto é, conseguirá a emenda de alguns abusos, e a correção do mal, em parte ao menos? ou pelo contrário o exacerbará, como, pela inoportunidade do remédio, tantas vezes acontece? O tempo só poderá dizê-lo; quanto ao pobre escritor, amestrado e escarmentado em tantos exemplos de jactanciosa temeridade, espírito tímido e flutuante, não ousa esperar coisa alguma com fé robusta nesta época de dúvidas e incertezas.

Quando menos, ou antes, quando muito, estas páginas modestas e humildes serão como memórias do tempo presente, em que, mais tarde, algum esquadrinhador de antiguidades possa beber uma ou outra notícia com que instrua ou deleite os seus contemporâneos.

 Uma última palavra, à feição de post scriptum, para o qual muita gente costuma guardar o mais importante da missiva. Este pobre Timon, nosso contemporâneo, não possui eira nem beira, nem mesmo aquele confortável ramo de figueira que o seu ilustre homônimo, o Misantropo, franqueava com tanta generosidade aos cidadãos de Atenas cobiçosos de dar o salto da eternidade. Fica pois entendido que o seu jornal só poderá ser publicado mediante o auxílio dos modernos atenienses, que como é claro e notório ao mundo inteiro, tanto desbancam os antigos na graça, no espírito, na liberalidade, na munificência, e em todos os mais dotes que caracterizam um grande povo.


* Jornalista, crítico, historiador, orador e político, membro da Academia Brasileira de Letras.

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