Introdução
histórica sobre a Literatura Brasileira
* Por
J. M. Pereira da Silva
[...]
Os portugueses, que
eram então o povo mais heroico e cavalheiresco da Europa, começaram a colonizar
o Brasil, que, descoberto por um seu compatriota, era por eles considerado sua
propriedade, tanto mais quanto o reconhecimento do Pontífice Romano a havia
sancionado. Tinham porém que dividir muito sua atenção e seus cuidados. A
melhor parte da Ásia lhes pertencia; reinavam na África, e nas Ilhas do grande
Oceano; suas possessões estendiam-se a perder de vista: seu estandarte
tremulava nas fortalezas de Malaca, de Diu, de Tânger, Ceuta e mil outras
cidades importantes do mundo; seus navios cruzavam todas as costas; suas
esquadras enchiam todos os mares: eles eram povo pouco numeroso, cerrado seu
território entre o Oceano e a Espanha, como poderiam atender e favorecer muito
ao Brasil? Entretanto cumpre dizer, para sermos imparciais, que, ou pela
proximidade em que o Brasil ficava de Portugal, ou porque descobrissem maiores
recursos e riquezas no País, desde logo o preferiram a todas as suas antigas
possessões, e mais prezavam a nova colônia que aquelas de que até ali tinham
tirado grandes riquezas e proveitos.
Fundaram cidades nas
melhores enseadas e costas; aqui elevaram o Rio de Janeiro, acolá Bahia de
Todos os Santos e Porto Seguro, ali Belém do Pará, e São Luís do Maranhão, e ao
pé do Cabo de Santo Agostinho a bela Recife. À proporção que se foram
entranhando pelo interior, formaram estabelecimentos, arraiais e povoações,
que, com o andar dos tempos, prosperaram e cresceram.
O século décimo sexto
decorreu por entre estes primeiros trabalhos de colonização. Eram continuadas
emigrações que deixavam a mãe pátria, e vinham habitar o novo país, do qual
tantos elogios se diziam, e onde se divulgava ser fácil ganhar a vida,
entesourar ouro e prata, gozar-se de ameno clima, clima sempre de primavera,
onde jamais chegava o inverno com seus horrores, e a peste com suas
devastações. A pobreza era grande em Portugal, e a população superior ao que
podia conter e manter o território, por mais fértil que fosse. Em vez de irem
quebrar arneses com infiéis nos campos de Tunes e Alzira, onde arriscavam a
vida, melhor lhes parecia, e na verdade mais bem acertado era, mudar de terra e
procurar um país novo e rico, que tão lisonjeiras esperanças lhes dava, e no
qual viviam debaixo das mesmas leis, obedecendo ao mesmo Soberano, e falando a
mesma língua.
Também a religião, a
verdadeira e profunda religião animava ainda aqueles Portugueses: os conventos
estavam cheios de frades e religiosos, que na vida solitária e pacífica do
claustro procuravam independência e liberdade; os conventos eram numerosos em
Portugal, os Reis haviam-se esmerado sempre em animar e favorecer seus
estabelecimentos; ali guardava-se a ciência, a ilustração; dali é que saíam os
sábios, os conselheiros e confessores dos Reis, os homens de mais conhecimentos
e influência do reino. Os claustros, movidos por sentimentos de religião,
começaram a mandar para o Brasil delegados seus, religiosos missionários, com o
fim de catequizarem os selvagens, estabelecerem escolas na nova colônia, e
estenderem a sua própria influência, ramificando-a por este modo em ambos os
mundos.
Entre estes
religiosos, é nosso dever declarar que os jesuítas foram os que mais se
esmeraram. Vieram muitos como missionários para o Brasil, espalharam-se por
entre o povo, e por entre os selvagens; instruíam a uns nos mistérios da
Religião Católica Apostólica Romana, a outros aconselhavam nos transes
arriscados da sua vida, a estes mitigavam suas dores, àqueles ajudavam e
socorriam, e por este modo granjeavam afeições e simpatias, de que restam ainda
hoje vestígios e documentos.
Abria-se com a espada
o caminho das brenhas, atravessavam-se com a lança as alcantiladas montanhas,
venciam-se à força as torrentes e caudalosos rios, e aí, onde se plantavam as
cinco chagas de Cristo, um religioso, um jesuíta se achava, e a vitória da
persuasão, o triunfo da palavra por eles empregada, não eram inferiores às
vitórias e triunfos alcançados manobrando o gládio e dardejando a morte.
Uma e outra coisa eram
precisas. A perícia das armas, a audácia dos invasores, a tática dos europeus,
ganhavam terras, edificavam povoações, estabeleciam o domínio do seu Soberano;
a brandura e eloqüência dos religiosos, a santidade de vida que professavam, os
conselhos que sabiam dar, chamavam ao grêmio os selvagens, conciliavam-nos com
os portugueses, faziam-nos desamparar a adoração do Sol, dos rios e das
florestas, para abraçarem o cristianismo. Indígenas e portugueses, todos deviam
favores e serviços aos jesuítas; todos os adoravam.
Para eles os jesuítas
eram os médicos do corpo e da alma, aqueles que lhes aplicavam remédios em suas
moléstias, que eram alguns muito instruídos na medicina, ao menos na medicina
prática do país, e aqueles que lhes serviam de pais para os conciliarem e
socorrerem, de párocos para os ouvirem e abençoarem: o domínio dos jesuítas era
extenso, e poderosa sua influência, porque ela fundava seu poderio no coração,
sua base no agradecimento, e seu principal núcleo na dependência material e
espiritual em que esses povos se achavam deles.
E releva dizer, para
glória da Companhia de Jesus, que jamais seus missionários no Brasil abusaram
da força que tinham para tentar contra a legitimidade de seus amos, contra a
vida dos seus monarcas, e para roubar ao coração dos homens deles dependentes
os sentimentos de lealdade e fidelidade para com os reis de Portugal: o começo
da civilização no Brasil, a instrução que principiou o povo da colônia a
receber, as luzes que se foram derramando, os primeiros estímulos de
literatura, tudo é devido aos cuidados dos missionários jesuítas.
A primeira escola de
gramática estabelecida no Brasil foi criada na cidade da Bahia, no ano de 1543.
Aos jesuítas se deve ela. A segunda escola que se criou foi a de humanidades,
estabelecida também por eles em 1554, em um colégio nos campos de Piratininga,
e essas humanidades não passavam de curtos rudimentos de Teologia e de
princípios de gramática latina.
Tão generosos
sacerdotes, tão zelosos padres, dignos da nossa gratidão e respeito,
verdadeiros intérpretes do seu divino mestre, pobres e miseráveis, não tinham
receio de se expor por entre os selvagens, a fim de os catequizar e instruir;
sacrificavam-se para desenvolver sua inteligência, para melhorar sua sorte,
para fazer-lhes abraçar a verdadeira religião, de que eram missionários, e para
propagar a civilização e as luzes.
Entre eles havia um
homem de grandes virtudes, e de muita instrução; estimado e venerado como um
santo, contando-se até milagres por ele praticados, e autor de alguns escritos
e compêndios, pelos quais se ensinavam as humanidades em Piratininga.
Chamava-se Padre José de Anchieta.
O sr. D. J. G.
Magalhães, nos seus artigos literários há tempos publicados em diversos
jornais, narra um fato importante deste digno missionário, que lhe faz a maior
honra, e que, segundo sua declaração, foi colhido pelo Padre Paternina, e
reproduzido unicamente por Simão de Vasconcelos. O Padre Anchieta, levado não
só pelo desejo de ilustrar e entender o seu rebanho, senão também pela vontade
de acabar com certas indecências, que se representavam nas igrejas nos atos
sagrados, compôs um drama em verso, ou auto, com o título de Pregação
universal, que era aplicado aos portugueses e indígenas, constando de uma e de
outra língua, para que de todos fosse entendido.
“Tinha este drama, diz
o Sr. Magalhães, todos os caracteres da prisca comédia, e ainda mais, os atores
do drama, que não eram cômicos de profissão, mas sim particulares, a que damos
o título de amadores, falavam em seu próprio nome, e se acusavam de seus
próprios erros.”
É assim que os padres
da Companhia ilustravam e moralizavam o povo, ao passo que espalhavam o gosto
da metrificação e do ritmo melodioso do verso. Que salutares efeito não devia
produzir um semelhante ato, representado em pleno dia, a descoberto, e no adro
da igreja, nas vésperas do jubileu, da festa de Jesus, a que concorria todo o
povo! Como não se adoçariam os costumes e os hábitos! E que progressos não
fazia a Religião Católica Apostólica Romana!
O século XVI decorreu
e findou, por entre a luta dos portugueses com os selvagens, e a catequização
destes pelos esforços dos religiosos missionários, únicos a quem eles
cuidadosamente atendiam, fiel e respeitosamente obedeciam. Pouco a pouco,
graças a esses missionários, foi-se rasgando o véu da escuridão, foram
desaparecendo as trevas da barbaria. O cristianismo chamou a si os selvagens e
os colonos, serviu a uns e a outros, ilustrou a uns e a outros, foi conciliando
uns com os outros. Os missionários eram o centro, a potestade, para quem todos
recorriam; armados com o poder da palavra e da religião, sua força era imensa,
e cumpria a ela curvarem-se todos.
A poesia, essa melodia
da alma e do coração, essa primeira voz do homem, que se desprende balbuciando
apenas, essa linguagem mística, que conhecem as emaranhadas florestas, os
caudalosos rios, os áridos desertos, e as alcantiladas montanhas; a poesia, que
é a alma do universo, e que existe entre os povos civilizados, e também no meio
das tribos nômades, e desamparadas, a poesia foi o primeiro ramo da literatura,
que cultivaram os povos do Brasil. Sua civilização não se estendia a muito,
como acabamos de ver, apenas algumas escolas de gramática existiam; apenas
alguns padres ensinavam os primeiros rudimentos das ciências; e durante o
século XVI, apenas de algum brasileiro, de algum homem, que respirasse,
nascendo, a atmosfera de amor e de delícias deste país novo e encantador, se
contam versos e poesias, pela mor parte latinas, que constituem toda a
literatura brasileiro do século XVI, e que se perderam quase todas pelas livrarias
dos conventos dos religiosos, poucas e muito poucas tendo chegado até nossos
dias.
[...]
(Parnaso brasileiro,
1843.)
*
Político, romancista, historiador, crítico literário, biógrafo, poeta e
tradutor, membro da Academia Brasileira de Letras.
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