Introdução
à História da Literatura Brasileira
* Por
José Veríssimo
A literatura que se
escreve no Brasil é já expressão de um pensamento e sentimento que não se
confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade da língua,
não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o
Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à
nossa independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente
o distinguiu, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse se
veio formando desde as nossas primeiras manifestações literárias, sem que a
vassalagem ao pensamento e ao espírito português lograsse jamais abafá-lo. É
exatamente essa persistência no tempo e no espaço de tal sentimento,
manifestado literariamente, que dá à nossa literatura a unidade e lhe justifica
a autonomia.
A nossa literatura
colonial manteve aqui tão viva quanto lhe era possível a tradição literária
portuguesa. Submissa a esta e repetindo-lhe as manifestações, embora sem
nenhuma excelência e antes inferiormente, animou-a todavia desde o princípio o
nativo sentimento de apego à terra e afeto às suas coisas. Ainda sem propósito
acabaria este sentimento por determinar manifestações literárias que em estilo
diverso do da metrópole viessem a exprimir um gênero nacional que
paulatinamente se diferençava.
Necessariamente nasceu
e desenvolveu-se a literatura no Brasil como rebento da portuguesa e seu
reflexo. Nenhuma outra apreciável influência espiritual experimentou no período
da sua formação, que é colonial. Também do próprio meio em que se ia daquela
formando lhe não proveio então qualquer influxo mental que pudesse contribuir
para distingui-la. E como assim foi até quase acabar o século XVIII, não
apresenta períodos claros e definidos da sua evolução nesse lapso. As reações
que daquele meio porventura sofreu foram apenas de ordem física, a impressão da
terra em seus filhos; de ordem fisiológica, os naturais efeitos dos cruzamentos
que aqui produziram novos tipos étnicos; e de ordem política e social,
resultantes das lutas com os holandeses e outros forasteiros, das expedições
conquistadoras do sertão, dos descobrimentos das minas e consequente dilatação
do país e aumento da sua riqueza e importância. Estas reações não bastaram para
de qualquer modo infirmar a influência espiritual portuguesa e minguar-lhe os
efeitos. Criaram, porém, o sentimento por onde a literatura aqui se viria a
diferençar da portuguesa. As divisões até hoje feitas no desenvolvimento da
nossa literatura não parece correspondam à realidade dos fatos. Mostra-o a sua
mesma variação e diversidade nos diferentes historiadores da nossa literatura,
e até mesmo no principal deles, incoerente consigo mesmo. Após curado estudo
desses fatos tenho por impossível e vão assentá-los em divisões perfeitamente
exatas ou dispô-los em bem distintas categorias. Fazê-lo com êxito importaria o
mesmo que descobrir outros tantos aspectos diversos e característicos em uma
literatura sem autonomia, atividade e riqueza bastantes para se nela passarem
as alterações de inspiração, de estesia ou de estilo que discriminam e assentam
os períodos literários; uma literatura que em trezentos anos da sua existência
apagada e mesquinha não experimentou outras reações espirituais que as da
metrópole, servilmente seguida. Assim sendo, é evidente que os únicos períodos
literários aqui verificáveis seriam os mesmos ali averiguados. Quando começava
aqui a literatura, lá havia terminado, ou estava terminado, o Quinhentismo, a
melhor época da portuguesa. Principiava então lá o seiscentismo, prematura e
rápida degradação daquele brilhante momento, cuja brevidade era aliás consoante
com a da época de esplendor nacional, revendo tudo o que de ocasional e
fortuito houvera nos escassos cem anos da dupla glória portuguesa. Mas, como
acertadamente nota um novo crítico, “o seiscentismo não terminou em 1699, no
último dia do ano, perdurou até a segunda metade do século XVIII, e a Arcádia e
suas imitações não encerram o século XVIII; a Arcádia de Antônio Diniz só se
fundou em 1756. No segundo quartel ainda Antônio José satirizava o gongorismo,
que era uma atualidade”. (Fidelino de Figueiredo, A crítica literária em
Portugal. Lisboa, 1910, p. 99.)
O que, portanto, havia
no Brasil era o seiscentismo, a escola gongórica ou espanhola, aqui
amesquinhada pela imitação, e por ser, na poesia e na prosa, a balbuciante
expressão de uma sociedade embrionária, sem feição nem caráter, inculta e
grossa. Que o era, o mais perfuntório exame, a leitura ainda por alto dos versejadores
e prosistas dessa época o mostrará irrecusavelmente. Não há descobri-lhes
diferença que os releve na inspiração, composição, forma ou estilo das obras.
Sob o aspecto literário são todos genuinamente portugueses, por via de regra
inferiores aos reinóis. A única exceção apresentada, a de Gregório de Matos, é
impertinente. Da sua obra a só porção distinta, e estimável por outras
qualidades que as propriamente literárias, é a satírica ou antes burlesca. A
inspiração e feitio desta não destoa, porém, quanto se tem presumido da musa
gaiata portuguesa do tempo, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha,
Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Diogo Camacho e
quejandos, todos mais ou menos discípulos e imitadores, como o nosso patrício,
do espanhol Quevedo, mas todos a ele inferiores. Como aos comuns motivos de
satirizar de seus êmulos portugueses juntasse Gregório de Matos o estímulo do
seu descontentamento de colonial gorado nas suas ambições e malogrado na sua
vaidade, é talvez o seu estro satírico mais rico e, para nós, muito mais
interessante que o daqueles. Não é, porém, nem mais original, nem mais subido.
A singularidade, mesmo a superioridade de Gregório de Matos, ainda quando bem
assente, não bastaria aliás para desabonar o conceito de que o seu exemplo não
prejudica a regra geral da nossa evolução literária no período colonial. Um só
escritor, uma só obra, salvo proeminência excepcional e de efeitos averiguados,
não anula um fato literário como o verificado. A parte séria das composições de
Gregório de Matos é genuinamente do pior seiscentismo, como pela língua, estilo
e outras feições o é também a sua porção satírica. De resto o seu caso foi
único e isolado, incapaz, portanto, de alterar como quer que fosse a
continuidade do nosso desenvolvimento literário. E os fatos provam que em nada
o alterou. Simultânea e posteriormente continuou aquele como se vinha fazendo.
Somente para o fim do
século XVIII é que entramos a sentir nos poetas brasileiros algo que os começa
a distinguir. E só nos poetas. Distinção, porém, ainda muito escassa e limitada
e também parcial. Por um ou outro poema em que se revê a influência americana,
há dezenas de outros em tudo e por tudo portugueses. Os mesmos poetas do
princípio do século XIX, sucessores imediatos dos mineiros e predecessores
próximos dos românticos, são ainda e sobretudo seiscentistas, apenas levemente
atenuados pelo arcadismo. Esta procrastinação do seiscentismo aqui, como o
gongorismo que lhe era consubstancial, e é acaso congênito à gente ibérica,
além do motivo geral da mais lenta evolução mental das colônias, poderia talvez
explicá-lo o ter aqui vivido, se exibido e influído o mais poderoso engenho
português dessa época, o padre Antônio Vieira. A sua singular individualidade,
exaltando-lhe os insignes dotes literários, supera a desprezível feição
literária do período e a ampara e defende se não legitima. A corroborar-lhe a
má influência, continuada pelos pregadores seus discípulos, vieram as Academias
literárias, focos e escolas do mais desbragado gongorismo. Somente com os
primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando a
trilha logo apagada da plêiade mineira, entra já a cantar com inspiração feita
dum consciente espírito nacional. Atuando na expressão principiava essa
inspiração a diferençá-la da portuguesa. Desde então somente é possível
descobrir traços diferenciais nas letras brasileiras. Não serão já propriamente
essenciais ou formais, deixam-se, porém, perceber nos estímulos de sua
inspiração motivos da sua composição e principalmente no seu propósito.
As duas únicas
divisões que legitimamente se podem fazer no desenvolvimento da literatura
brasileira, são, pois, as mesmas da nossa história como povo: período colonial
e período nacional. Entre os dois pode marcar-se um momento, um estádio de
transição, ocupado pelos poetas da plêiade mineira (1769-1795) e, se quiserem,
os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada, porém, em conjunto
a obra desses mesmos não se diversifica por tal modo da poética portuguesa
contemporânea, que force a invenção de uma categoria distinta para os pôr nela.
No primeiro período, o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática ou
meramente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática, parece-me
arbitrária. Nenhum fato literário autoriza, por exemplo, a descobrir nela mais
que algum levíssimo indício de “desenvolvimento autonômico”, insuficiente em
todo caso para assentar uma divisão metódica. Ao contrário, ela é em todo esse
período inteira e estritamente conjunta à portuguesa. Nas condições de evolução
da sociedade que aqui se formava, seria milagre que assim não fosse. De
desenvolvimento e portanto de formação, pois que desenvolvimento implica
formação e vice-versa, é todo o período colonial da nossa literatura, porém,
apenas de desenvolvimento em quantidade e extensão, e não de atributos que a
diferençassem.
[...]
(História da
literatura brasileira, 1916).
*
Crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.
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