Depois da Abolição
* Por
Alcindo Guanabara
Este artigo vem
retardado de dois dias, o que, para o momento de excepcional celeridade que
atravessamos, é uma demora respeitável. Mas para isso houve um motivo poderoso:
o Novidades não foi publicado ontem, nem anteontem. É, pois, agora a primeira
vez que falamos depois da abolição; e bem preciso é que o façamos quando toda a
imprensa se congrega para realizar festejos que comemorem o advento da
liberdade.
Outra tivesse sido a
nossa posição como jornalista em face desta lei e do governo que a promoveu e nada
teríamos a dizer depois da distinção conferida a esta folha, na pessoa de seu
redator-chefe nomeado membro da comissão executiva da imprensa. Mas nós fomos o
jornalista que mais veementemente a combateu, que mais acesamente se mostrou
nessa campanha contra a lei que acaba de ser assinada; e a posição tomada com
todos os nossos ilustres colegas nos coloca na contingência de expor a nossa
situação no dia seguinte ao da sua passagem para que nos não venha ferir a
pecha do leviano e inconsequente.
Nós não podemos
aplaudir a lei que acaba de ser assinada, não pelo fato que ela consigna, mas
pela maneira por que chegou a ser consignado. Neste momento, porém, já se não
trata dos meios por que a abolição deve ser feita - e isto é que era o motivo
da divergência - visto que estamos diante do fato consumado. O princípio que
desse fato decorre, o reconhecimento da liberdade humana, esse que sempre o
amamos, sempre o defendemos, sempre lhe dedicamos todo o vigor e toda a energia
de nossa alma.
O que a imprensa soleniza
não é, nem pode ser a precipitação dos meios postos em ação para se atingir
este ideal; mas pura e simplesmente o ideal mesmo, o fato exclusivo de haverem
entrado, para a comunhão dos livres, centenas de homens.
Nós gastamos boa parte
da nossa atividade fazendo sentir que a abolição radical devia trazer
consequências funestíssimas ao país; e agora que ela está feita pela pior das
maneiras, seremos talvez o único jornalista que assim pensa! mas pensamos que
essas consequências serão inevitáveis e fatais.
Esta luta da abolição
deixa em ambos os terrenos muitos feridos. Nós somos um deles. Mas declaramos
que nos levantamos no dia seguinte ao de sua passagem sem ressentimentos e sem
ódios, esquecendo todas as ofensas recebidas, todas as injúrias tragadas, todos
os desalentos que nos vieram. E o fazemos porque estamos convencidos de que
devemos contribuir para que não venha amargurado demais o período que segue.
Nós cremos que
passados os primeiros entusiasmos cada um de nós tem de se apertar as mãos e preparar
para novas jornadas em campos necessariamente opostos, mas desta vez para
atenuar ou para impedir as conseqüências forçadas do passo dado ontem. E antes
de quem quer que seja é à imprensa que cabe essa atitude de defensora da
tranqüilidade e da vida da nação.
Se puderem falhar
estas previsões lúgubres, se podemos reclamar para nós também uma
coparticipação no epitáfio que o sr. barão de Cotegipe reclama para a sua
lousa, tanto melhor para nós todos, tanto melhor para a nossa pátria!
Desejamo-lo ardentemente, pedimos com todas as veras d’alma que nos seja dado
registrar numa retratação solene que fomos um fantasista tétrico, um
sentimentalista vulgar. Mas essa é hoje a nossa convicção íntima e devemos
declará-la, no dia seguinte ao em que se assina a lei que combatemos na medida
de nossas forças.
Ninguém decerto se
apercebeu deste esforço, e não o salientaríamos se não fosse a situação em que
nos achamos. Hoje, porém, não temos escrúpulos em cooperar para que as
conseqüências da abolição imediata sejam festas e flores. Muito ao contrário,
entendemos (e isso mesmo dissemos anteontem, num artigo em que referíamos a
impressão que este movimento devera ter causado ao espírito do Imperador) que o
dever dos que a combateram era precisamente envidar esforços para atenuar os
males que daí nós supomos que advirão.
A Abolição é, hoje,
lei do Estado: só temos que obedecer-lhe e respeitá-la; mas se nos é dado
contribuir para que as suas consequências derivem das calamidades sociais que
prevemos para as alegrias sociais que desejamos, por que razão nos havemos de
negar? As crises econômicas, essas são fatais e estão acima de todo o esforço
humano.
Bastem-nos estas!
Empenhemos todos os esforços que estiverem a nosso alcance para que o Brasil
progrida em paz, na confraternização geral de todos os corações.
A nossa adesão à
comemoração da liberdade está, pois, claramente definida nesses termos.
(Novidades, de
15-5-1888.)
*
Jornalista, escritor e político, membro da Academia Brasileira de Letras.
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