O Terminal Guadalupe e as sombras
* Por
Isabel Furini
18 horas - Cai o sol
de inverno, pálido, sem forças.
19 horas – Escurece
mesmo.
Os operários da
construção civil, trabalhadores domésticos, pessoal da limpeza, vendedores
alguns camelôs, professores, poetas e sonhadores, saem de seus trabalhos e
correm até o terminal.
Mariazinha, está na
fila do Vila Zumbi quando escuta seu nome: "Mariazinha" – alguém
acena para ela. Que bom! – murmura a Mariazinha – O gerente vai me dar carona
de novo.
– Não faça isso
senhora, é pecado. – diz uma mulher com saia e cabelos longos (muito longa a
saia, muito longo o cabelo).
Uma mulher de olhos
azuis observa de cima para baixo a mulher de saia comprida e solta uma
gargalhada. – Cale a boca sua vadia e cuide de sua vida! – fala com autoridade.
Minutos depois chega
Aparecida, Cida para os amigos. Estou pensando em fotografar esses dois e
ganhar uma grana extra.
Boa ideia, fala a
mulher dos olhos azuis.
Um casal de idosos
olha para elas e comenta algo sobre falta de ética. – O mundo mudou, meu velho
– fala a idosa.
Duas mulheres olham
para a igreja do Guadalupe e fazem o sinal da cruz. Um pai fala para seus
filhos "é o triunfo do mal, um sinal do fim do mundo". Idiotas pensa
uma professora, tira um livro da bolsa e começa a ler. Várias pessoas da fila
comentam o fato de o ônibus estar demorando mais que outros dias.
O Apolinário olha as
pessoas apinhadas e fala:
Foi tão difícil a
estrada!
meus pés estão
cansados,
minhas mãos,
calejadas,
minha boca muda e sem
vida
minha vida sem
esperanças.
Ninguém olha para ele.
Que indiferença. Ninguém vai dizer nada? Gente. Eu declamei um poema.
Chega o ônibus – Por
fim! – exclamo um idoso. As pessoas começam a subir e ocupar os assentos.
Alguns viajam de pé, outros preferem esperar o próximo. A fila parece uma cobra
gigantesca. Cresce rapidamente.
Apolinário repete:
Foi tão difícil a
estrada!
meus pés estão
cansados,
minhas mãos,
calejadas,
minha boca muda e sem
vida
minha vida sem
esperanças.
– Parece que ninguém
gostou do poema. Fala o Apolinário.
– Não adianta –
comenta Tiago, um amigo dele. Eles não conseguem te enxergar.
– Um momento. Veja
essa criança, ele escutou. Sim, ele escutou e está olhando para os lados.
– Olhe, mamãe. Esse
cara engraçado, lá no teto.
– Querido, esse é seu
amiguinho invisível? – Pergunta a mãe sorridente, encurvando-se sobre a criança
e dando-lhe um beijo na bochecha.
– Ele não é meu amigo
– fala a criança.
De repente uma forte
luz ilumina o lado direito do terminal, mas ninguém repara.
Do lado esquerdo, as
sombras crescem.
Do lado direito um
homem com roupas brancas tem um sorriso iluminado.
Do lado esquerdo, um
homem com roupas cinzas tem um olhar terrível.
Do lado direito, para
um ônibus, as pessoas começam a subir. O Zecão abre a carteira. O homem do
sorriso iluminado grita:
– Não faça isso Zecão,
falei tantas vezes para não fazer isso, meu amigo.
Do lado esquerdo três
homens correm. O rapaz de óculos empurra o Zecão, outro tenta pegar a carteira.
O Zecão, aperta a carteira. Um dá um soco no nariz dele. Mas o Zecão não solta.
O terceiro, passa a navalha pela garganta do Zecão.
O Zecão não solta a
carteira. As pessoas gritam. O sangue encharca o terminal. As pessoas pegam os
celulares e tiram fotografias do Zecão morrendo. Ninguém chama uma ambulância.
É mais importante registrar o momento. Não adianta, esse cara vai morrer mesmo,
fala o rapaz de camiseta amarela. Vamos tentar vender essas fotos para algum
jornal, murmura o amigo dele.
Uma moça solicita a
uma mulher vestida com casaco preto, de olhos esbugalhados, para tirar uma foto
dela ao lado do morto. A mulher está a ponto de chorar.
– Por favor, senhora,
implora a moça. Uma coisa como esta é difícil de acontecer, fala enquanto
penteia o cabelo. – Minhas amigas não vão acreditar. Preciso de uma foto.
A mulher seca uma
lágrima com o dorso da mão e pega a câmara fotográfica.
– Tem que apertar aqui
– fala a moça mostrando um botão prateado na parte direita da câmara. A mulher,
indecisa, demora um pouco, mas consegue tirar a foto. Na frente a moça, no chão
o homem ensanguentado.
– Preciso de várias
fotos, por favor, alguma delas vai ficar boa. Fala a moça muito empolgada como
se o momento fosse de festa.
Perto dela um rapaz
com seus fones de ouvido faz movimento de dança com a cabeça, mas o corpo
permanece rígido no lugar.
O homem sorridente que
faz parte do globo de luz da direita grita:
– Ei, Zecão. Venha
para este lado, homem. Não vai para as sombras, não. Venha!
Os outros seres que
estão a seu lado também gritam: – Venha, Zecão, venha.
– Zecão, você está em
nossa lista! – grita o homem de olhar terrível que chefia as sombras.
– Está na lista! –
grita o coro de sombras desafinado.
O Zecão está confuso.
Lembra da esposa e dos filhos, ele quer voltar para casa. Sentar no sofá,
assistir TV., comer o arroz com feijão.
O homem de olhar
terrível do lado esquerdo mostra partes da vida do morto.
O homem sorridente do
lado direito, também mostra partes da vida do morto.
O Zecão sente medo.
Impulsivamente, corre para a luz.
O poeta vê a cena e declama
um poema:
Essa luz que agora
acende,
com milhares de
lembranças,
é de um túnel que
surpreende.
Quem caminha além do
túnel
reencontrará a
esperança.
O homem sorridente da
bola de luz que está do lado direito grita:
– Poeta, você vai
entrar na luz ou vai continuar declamando no terminal?
– Eu também morri
neste terminal – fala o poeta. Mas foi de problema cardíaco, há 8 anos. Acho
que vou ficar por aqui mesmo. Sempre encontro amigos.
– Sim, vamos ficar
mais um pouco – disse o amigo de Apolinário. Os dois pulam sobre o teto de
ônibus amarelo que está saindo do terminal e acenam repetidamente com a mão
direita.
* Isabel Furini é escritora e poeta
premiada, autora de “Eu quero ser escritor – a crônica”, do Instituto Memória,
Curitiba.
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