Sobre
comida e saúde
* Por André
Falavigna
Outro dia, aqui no Literário, numa
crônica sobre como devemos proceder para identificar, isolar e destruir
frescuras, eu disse duas ou três coisinhas sobre a visão que as pessoas têm a
respeito da comida que comem. Naquela ocasião, eu escrevi que “Outro bom meio de
identificar um fresco é sua alimentação. Todo homem que não compreende que o
ato de comer é pura diversão e que não tem nada a ver com a saúde é, além de um
fresco, um nazista e um filha de uma puta”.
É hora de desdobrar o argumento e
aprofundar a tese.
Vejam só: não utilizei o termo “todo
homem” à toa. Essa é uma manifestação de frescura típica de homem mesmo.
Mulheres se preocupam com essas asneiras por motivos que muito menos têm a ver
com frescura do que têm a ver com neuroses. Se há uma coisa que o feminismo
poderia ao menos tentar pelas mulheres é livrá-las da pressão pelo
enquadramento do corpo. Hoje se diz muito que “a busca do corpo perfeito” é uma
paranóia de nosso tempo. Trata-se de um erro terminológico grave. Corpo
perfeito o escambau. O que se busca é atender a um protocolo de uniformização
da beleza cujos padrões são muito, muito estranhos. O próprio intento de
uniformizar é medonho. Que a partir de qualquer modelo baseado nele não se obtenha
garantia nenhuma de beleza, isso decorre da inaplicabilidade dos próprios
conceitos de homogeneidade e de garantia na beleza física; que tanto se insista
nisso, a ponto de já tanta gente nem notar o absurdo, isso já fede a enxofre.
Mulheres sofrem porque acham que precisam ser magras a todo custo e porque,
convenhamos, a natureza lhes é ingrata: conte quantas mulheres com mais de
cinqüenta anos ainda povoam o imaginário dos homens que você conhece, depois
lembre-se de Mel Gibson, de Richard Gere e de mim, daqui a vinte anos.
Com
homens tudo muda de figura. O sujeito que tem ostensiva preocupação com a
própria aparência é um convertido da pior espécie, porque assume para si
exigências que já são indevidas quando lançadas contra mulheres. Criatura repulsiva,
que como homem não estaria diretamente sob a artilharia midiática acerca do
corpo “gostoso”, mas que acha lindo correr para debaixo dela ansioso e sapeca.
Ninguém espera que os homens sejam porcos, não tomem banho, andem maltrapilhos
ou tenham bafo. Daí a perder horas na frente do espelho ou escolhendo uma
roupa, possuir uma sapateira com vinte pares ou fazer depilação definitiva, a
coisa vai bem longe. O camarada que exige isso de mulheres é meio tonto. O que
exige isso de si, lá no Cambuci tem outro nome.
Mas esse tipo ainda não é aquele ao
qual eu me referia na outra crônica. Esse cai no ridículo muito facilmente e
pode muito facilmente ser identificado. O espécime perigoso é aquele que lê as
reportagens sobre saúde que de tempos em tempos a Veja põe na capa e, depois,
modifica o cardápio da família toda. Diante de um desses, todo cuidado é pouco.
Uma vez, há uns cinco anos, fui almoçar
com o diretor financeiro de uma empresa na qual eu trabalhava. Como todo babaca
perfeito, ele me fez ir a um self-service. Comida por quilo é coisa para
animais. Raramente presta. Quando presta, presta menos do que qualquer comida a
là carte que custe a mesma coisa. O pior é o argumento da higiene. Quem sabe
como funciona um restaurante conhece o Lavoisier que existe dentro de cada dono
de Kiloucura.
Pois muito bem: enchi meu prato de ovos
de codorna (e de outras guloseimas, óbvio). Não sei se a lenda a respeito dos
ovos de codorna corresponde à verdade. O que sei é que ovo é sempre muito bom.
Assim que sentei à mesa, o chefinho manifestou espantinho: “Nofa, quanto ovo de
codorna”. Respondi que ovos de codorna são uma delícia. Ele me respondeu que
concordava. Eu lhe perguntei por que não os comia, então. Ele me disse que ovos
possuíam muito colesterol. Colesterol faz mal, entope as veias, forma placas,
faz o diabo com o coração do sujeito que tem muito colesterol. Por isso,
devemos evitar ovos. Compreendo.
Acontece que, se é mesmo verdade que
ingerir ovos pode nos fazer mal, não sei se evitar ovos pode nos fazer bem. Só
para ficar no exemplo do ovo. E digo “se é mesmo” porque já vi exemplos demais
de burros n’água por conta da fé cega na medicina. A medicina é mesmo uma
ciência. Deveríamos, portanto, tratá-la como tal, e não como uma Revelação
mística. Médicos são cientistas, não profetas. Profetas não erram, ou são
falsos profetas. Já cientistas podem errar o quanto for: é só assim que eles
conseguem acertar alguma coisa. Médicos que não erram são falsos cientistas, e
duplamente falsos; primeiro porque se fazem passar por profetas, coisa que não
são, depois porque, ao se passarem pelo que não são, deixam de ser o que
realmente eram: cientistas.
E cozinheiros são artistas. Não devem
satisfação nenhuma à saúde, a não ser na medida da saúde que passa pela
higiene. E olhe lá.
Sejam sinceros. O que pode fazer mais
mal a um indivíduo, a uma família, à sociedade e à civilização: um belo bife
com dois dedos de altura, mal passado, gordo e sagaz, ou uma ideologia
paranóica que pretenda que vivamos todos para sempre, desde que vivamos mal?
Não sei se a conta é possível, não deve ser, mas finjamos que sim; finjamos que
a ciência de hoje possa nos garantir que cada fritada de camarão pistola no
alho que viermos a comer resultará em dez ou quinze segundos de vida a menos,
lá na frente. Diante de uma informação
dessas, aquele meu diretor financeiro deixaria de comer fritadas de camarão pistola
no alho. Ele e uma parcela cada vez maior de nossas classes “esclarecidas”. Se,
daqui a vinte anos, o Fantástico disser que a ciência daquele tempo diz que as
fritadas de camarão pistola no alho são excelentes para o trato intestinal e
que a privação delas pode causar paralisia retal generalizada, essa gente toda
vai nos incomodar uma barbaridade. Para completar, terão deixado de aproveitar
umas cinqüenta fritadas, estarão azedos e terão sido chatos por duas décadas,
durante as quais eu fui ficando cada vez mais charmoso e Mel Gibson foi
envelhecendo com cada vez mais dignidade.
Comida sem gordura é moralmente
reprovável. Comida sem sal é um risco tão grande à condição humana quanto o são
as possibilidades de guerra nuclear, de pandemias viróticas e de reprodução
assexuada dos intelectuais de esquerda. A onda contra a carne vermelha,
sobretudo a mal passada, torna a degradação da camada de ozônio um assunto de
nefelibatas e irresponsáveis. Chocolate é uma invenção genial, conservas são
uma dádiva, embutidos uma missão de vida. Se uma pessoa não consegue apreciar
panceta defumada, ela precisa de suporte psicológico e medicação severa.
Essas coisas todas não têm nada a ver
com gosto, têm a ver com educação. Se alguém não gosta de Mozart, é porque não
entende música, porque não foi educado. Se não consegue ler Machado, é porque
não o ensinaram a ler e isso é ruim, e se não entende que isso é ruim é porque
é burro mesmo. Uma pessoa assim precisa de ajuda, não de cafuné. Eu não tenho
que respeitar o gosto de ninguém, tenho apenas que respeitar o direito de
alguém de ter o gosto que bem entender, por pior que seja a mania. Mas tenho,
ainda, a obrigação de dizer: se você pede para passarem sua picanha, você
simplesmente não foi ensinado a comer picanha, é um ignorante, e esconder-se
atrás de confusas hipóteses médicas não o fará menos ignorante; apenas o
tornará um ignorante covarde e teimoso.
Saladas são uma coisa fantástica, um
universo quase infinito de possibilidades. Peixes também. Frango pode ser
excelente. Mas, se você escolher comer salada, peixe ou frango pensando em
saúde, e não em prazer, comerá saladas insossas, peixes inexpressivos e
peitinhos de frango à moda do bobo. Mentir a respeito disso, dizendo que seu
peito de frango sem sal acompanhado de alface americana sem azeite está uma
delícia, enquanto torce o nariz para a rabada de seu vizinho de mesa, não
conferirá sabor ao frango ou retirará sabor da rabada. O único efeito obtido
com essa atitude é que ninguém acreditará em mais nada do que você disser e,
quando o estuprarem e você gritar por socorro, vão pensar que é outro trote seu
e não o socorrerão.
Nós só copiamos os EUA no que eles têm
de ruim. Importamos práticas politicamente corretas, estamos tentando importar
o racismo e já absorvemos completamente a visão utilitária das refeições, a
hipocondria e o messianismo científico. Eu não tenho muito a dizer sobre os
outros itens, inclusive porque há muito mais gente dizendo o que eu gostaria de
dizer, e de maneira muito melhor do que aquela de que eu seria capaz. Sobre
esse ataque ao prazer na mesa, entretanto, eu acabo de deixar minha modesta
contribuição.
Foi tudo muito trabalhoso. Fiquei com
fome. Fiquei com sede. O Empório A&M me aguarda. Cerveja gelada me aguarda.
Salame fatiado também. Azeitonas e tremoços. Ontem, fiz um lombo de porco,
gordo, que hoje também me aguarda, em casa, onde a pimenta deve lhe ter
conferido propriedades transcendentais. Com agrião nadando no azeite, vai ficar
uma loucura. Tudo isso me impede de prosseguir. Acho que vocês agora me
entendem. Até a semana.
(*) André Falavigna é escritor,
tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web.
Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance.
Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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