Passeio ao sol
* Por Pedro J.
Bondaczuk
"A minha alma sai ao sol, em um
passeio pelos laranjais em verde e ouro do pomar da fazenda do vovô. Minha
memória vaga, preguiçosa, sem pressa, por entre o trigal dourado, tendo por
pano de fundo um céu de intenso azul". Este trecho de reminiscências da
infância, da minha Horizontina natal, na coxilha gaúcha, encontrei em um dos
meus vários diários.
Traz-me à mente o desejo que sempre
tive de ser pintor, embora jamais mostrasse o mínimo talento para essa arte (ou
para qualquer outra). Aprecio o contraste de cores. Admiro o jogo inteligente
de luz e sombra, característico dos mestres flamengos, que dão a sensação de
movimento. Invejo esses criadores de beleza.
Tenho em casa a reprodução de uma tela,
em estilo clássico, de um pintor francês que passou pelo Brasil no início do
século passado, onde influenciou toda uma geração, Nicolas Antoine Taunay. O
original integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Trata-se do quadro denominado "Pastoral", pintado em óleo sobre
madeira.
Aliás, percebe-se que o aspecto suave e
luminoso de suas produções tem muito de influência do nosso País. Na referida
obra é fascinante se ater aos detalhes. Virtualmente, a tela não tem espaços
vazios. No alto e nas laterais, o artista preencheu-a com árvores. Ao
centro, algumas vacas e vinte pastores, entre homens, mulheres e crianças. Dois
deles tocam flauta, enquanto algumas moças dançam.
Entrevê-se apenas uma nesga de céu. Há
muitas sombras e a luz solar refletindo-se nas folhas. Impressionante é a
sensação de luminosidade que o artista passa ao espectador. A cena toda parece
ter vida, movimento, alma. Representa que se está olhando por uma janela e
vendo o que está ocorrendo lá fora. Tem-se a sensação, até, de se ouvir o som
da flauta.
Trata-se de uma obra que não se pode
limitar a olhar. É preciso sentir o clima. Transportar-se, em imaginação, para
o lugar. Fotógrafo algum, por mais perito que seja, utilizando os mais
sofisticados recursos de sua profissão, conseguiria os efeitos desse quadro. E
pensar que ele saiu da imaginação de um artista! Bendito talento de recriar a
vida! É mais ou menos o que os poetas procuram fazer, mas com instrumental mais
rústico e precário: o das palavras.
Alguns escritores extremamente talentosos
conseguem passar ao leitor essa sensação de vida. Seus textos, quando lidos e
sentidos, desenham imagens nítidas, fortes, vigorosas em nossa mente, bastando
que fechemos os olhos para dar asas à nossa imaginação.
Um exemplo enfático é este trecho do livro
"Correspondência", de Gustave Flaubert: "Experimentei algumas
vezes (nos meus grandes dias de sol), no esplendor do entusiasmo que me dava
arrepios, do calcanhar à raiz dos cabelos, um estado de alma superior à vida,
ante o qual a glória não seria nada, e a própria felicidade inútil".
Classificaria essa sensação de "metafelicidade". Ela vai muito,
muitíssimo além do simples "estar feliz". Senti-me inúmeras vezes
dessa forma, embora jamais tenha conseguido expressar a experiência com essa
elegância do mestre francês.
Esse estado de graça ainda consigo
alcançar sempre que estou em contato com a natureza. Mesmo na cidade grande,
onde a vida adquire coloração gris e as emoções acompanham-na, tenho tido esses
lampejos. Em manhãs luminosas, aguardando a hora de dirigir-me ao trabalho,
sinto o ar embalsamado de perfumes.
Ouço o canto dos bem-te-vis, que
existem em grande quantidade em Campinas, cidade na qual resido. Percebo o
quanto estou fora do meu verdadeiro meio. Sou um homem telúrico, ligado à
terra, onde finco minhas raízes. Nasci num lugar muito bonito da coxilha
gaúcha, sem o burburinho da metrópole e nem as suas complicações. Por aqui,
minha alma não consegue sair ao sol, em um pomar verde e ouro. Resta-me apenas
o consolo estético da reprodução da "Pastoral" de Taunay...
* Jornalista, radialista e escritor.
Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981
e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras
funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e
“Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos &
Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário),
página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia
Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
O período mais feliz de minha vida relaciona-se com o perfume de mato que me entrava pela janela todas as manhãs. O calor do sol também é algo primordial para mim. Tais detalhes não são tudo, mas tornam a existência melhor. Ainda mais com a ajuda de um belo quadro para fazer a criança que fomos se transportar.
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