O valor da técnica
* Por
Deolindo Couto
Em cada noite de
festa, celebra este grêmio o esplendor de uma vocação, atormentada, não raro,
pela grandeza da faina profissional, mas dominadora e firme, até consagrar-se
no batismo acadêmico.
Cedo se revelam as tendências,
quando irresistíveis e capazes de salientar-se na personalidade. De então,
avolumam-se os deveres, cresce o prestígio no ofício, escasseiam as horas de
repouso, desaba sobre a cabeça a nevada dos anos, porém sempre se encontrará no
predestinado o espírito forte, que lhe marcou indelevelmente a diretriz.
Em medicina, tudo é o
pendor. Não a eleja como carreira quem desapercebido das condições inatas, que
são as de entranhada piedade pelo sofredor e perseverança sem tréguas no
empreender o combate à doença. Por isso sentenciou Miguel Couto: "Aquele
que for fechado a estas paixões, renuncie para logo ao exercício de uma arte,
em que há de ser um supérfluo e, ao cabo, um maldizente." Estrada sem fim,
a percorrer na brevidade da vida, porque as idéias turbilhonam em perpétua
renovação, espalhando a instabilidade das novas causas e mecanismos apontados
como responsáveis pelos estados mórbidos, modificando-lhes o conceito e o
significado! Os próprios aspectos estatísticos concernentes à nosografia são passíveis
de alteração e de complemento.
Dentro de um século,
tanto evolveu a Cirurgia que é quase temerário ligá-la ao que, para traz, se
praticava. Só uma geração nos separa das operações sem anestesia, no próprio
leito do doente, por médicos de sobrecasaca, mãos perfumadas e até, como
pitorescamente o refere William German, com as pinças penduradas nas barbas e
os bisturis enfiados no cano das botas.
O ato cirúrgico vai
perdendo o caráter espetaculoso, em favor da segurança do paciente, que não é
apenas minuciosamente estudado antes e depois da intervenção, senão ainda na
vigência dela.
As conquistas da
fisiopatologia, introduzidas no campo da Cirurgia, multiplicaram as técnicas
que, hoje, melhor se podem chamar funcionais que anatômicas. Como isto lhe
dilatou as possibilidades! O rigorismo do comportamento não está mais na
observância dos clássicos tempos operatórios, úteis, entretanto, como
disciplina, mas na compreensão, por parte do executante, de que é mister
restabelecer a função da melhor maneira: daí o falar-se, hoje, correntemente,
de tática cirúrgica.
Mede-se o valor do
cirurgião pela capacidade no apreender o concreto do caso e não pelo número de
minutos que despendeu a menos na execução do ato operatório. Cushing e toda a
Escola neurocirúrgica norte-americana, expressão suprema da especialidade,
foram precursores de tal conduta, hoje felizmente em via de espraiar-se por
todos os distritos da técnica. Foi demorada a intervenção, mas o doente está
quase como antes dela e o caso foi resolvido como um problema de termos
apresentados na hora.
Se foi sempre admitida
como dogma a dessemelhança dos doentes, por que motivo executar servilmente um
método fixado pelos livros? É Leriche, cirurgião de gênio, quem, ao estudar a
supressão sangrenta da dor, traça as colaterais do problema, mostrando-lhe as
consideráveis variações e, depois de aludir à resistência à dor revelada pelos
soldados de Napoleão e de narrar operações que realizou sem anestésico em
militares cossacos, conclui: "Isto me provou que um aparelho não basta
para assegurar o desempenho de uma função. Torna-se-lhe mister certa alma, se
cabe a expressão, para significar as incidências movediças da vida."
Cada vez mais se exige
do cirurgião cultura de patologia e da chamada Medicina Interna, não sendo exagero
dizer que estas lhe são quase tão indispensáveis quanto a virtuosidade técnica.
Só assim se explica que Ottfrid Foerster e Clovis Vincent tenham comandado, na
Europa, um ramo da cirurgia em que se iniciaram vingada a quarta década de
vida; só destarte se concebe que Percival Bailey dissesse e escrevesse que
desconhecia nos Estados Unidos um cirurgião geral, ainda que ocupante da
cátedra, a cujas mãos confiasse o seu cérebro.
De tudo ressaltam o
valor do integral domínio do problema que oferece cada operando e a
possibilidade de que degenere em falência uma intervenção cirúrgica
admiravelmente executada como técnica.
(Vultos e idéias, 1961).
*
Médico, professor e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras
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