Eu furei a greve
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O título vai no
singular por pura modéstia, mas confesso que foi muito mais sério: furei
greves. No plural. Dei aulas durante todas as greves realizadas desde 2002 até
hoje nas duas universidades públicas onde trabalho. Contrariei as decisões das
assembleias docentes, a partir de uma vaia consagradora na última delas em que
participei, há quinze anos, quando falei contra a paralisação. Até aí tudo bem:
vaias e aplausos fazem parte do jogo democrático. Mas não houve debate. Minha
palavra foi cassada por quem presidia a mesa, que me brindou, em alto e bom
som, com o mesmo palavrão com o qual Collor injuriou, em voz baixa, o
procurador-geral Rodrigo Janot.
No lugar do ofensivo
fdp, podiam demonstrar que eu estava equivocado. O insulto, que não agrega, só
não repercutiu mais porque as testemunhas eram apenas quatro gatos pingados, já
que a assembleia, como quase sempre ocorre, estava esvaziada, sem que seus
organizadores desconfiem o porquê. Depois disso, me ausentei delas por entender
que, neste caso, negavam aquilo que deve ser função da universidade: um espaço
democrático de debate, de livre expressão do pensamento, de discordância com
respeito ao outro, de reflexão, de tentativa de convencer com argumento sólido
e fundamentado e não com o grito, insulto, intimidação.
Quando furo greve,
como gesto explícito de desobediência sindical similar à desobediência civil,
acabo trabalhando duplamente: aulas para alunos que não fazem greve, depois
reposição para os grevistas. Há mais de cinco anos, durante uma greve na UERJ,
encontrei de manhã cedo uma equipe do RJ-TV com câmaras e equipamentos. No
corredor, saindo da reitoria ocupada por estudantes vejo um ex-aluno meu
enrolado em uma bandeira do Brasil. Ele ia ser entrevistado, mas antes acenou
para mim e, sem saber que eu estava furando a greve, exclamou radiante:
- Professor, o sr.
viu? Ocupamos a reitoria!
- Uma cagada! -
respondi.
- Mas foi para apoiar
a greve de vocês - ele retrucou.
- Outra cagada - eu
disse.
Sua expressão de
desolação não conseguiu esconder a decepção. Ele não podia imaginar que um
ex-vice-presidente regional do Sindicato Nacional dos Docentes (Andes) - que eu
fui, eleitor quase sempre do PSOL - que eu sou, fosse um furador de greve.
Justifiquei: se o movimento ocorresse em uma universidade particular, contaria
com minha adesão, eu correria o risco de demissão e de salário cortado na luta
contra os tubarões do ensino. Mas numa universidade pública, embora as
reivindicações sejam mais do que justas, sem corte de salário não é greve, mas
férias remuneradas contra a instituição.
É um tiro no próprio
pé - eu disse ao aluno. Lembrei as críticas feitas por Marx aos operários que
na Inglaterra, no século XIX, indignados com a situação de exploração e de
extrema miséria, quebravam máquinas e incendiavam fábricas. Mutatis mutandis é
o que o denominado movimento paredista vem fazendo com as universidades
públicas: degrada o nosso lugar de trabalho, destrói os nossos instrumentos
simbólicos de produção, rebaixa a qualidade do ensino e da pesquisa, mesmo se o
discurso é diferente e se a intenção é outra. Não focaliza no inimigo.
Houve época em que
participei ativamente de greves. De muitas. Na última delas, na Universidade
Federal do Amazonas (UFAM), em meados dos anos 1980, percorri as salas de aula
de diferentes cursos pedindo apoio dos alunos. Um deles perguntou pelo
resultado da greve do ano anterior.
- Foi vitoriosa graças
ao apoio de vocês - eu disse didaticamente entusiasmado.
- Se foi vitoriosa e
era para melhorar a qualidade do ensino, gostaria de saber o que melhorou neste
último ano? - ele perguntou.
Aluno é bicho cruel.
Ele foi dando nomes aos bois. Disse que o professor X havia comprado um carro
do ano, mas entrava em sala de aula com as mesmas fichas amarelas e
desatualizadas porque não comprava livros. Esse ainda dava aulas. O professor Y
faltava sistematicamente, o professor Z chegava sempre atrasado e não corrigia
os trabalhos. Concluiu avaliando que a greve era corporativista, não melhorava
a universidade. Contestei a generalização, citando nominalmente outros colegas
comprometidos com a instituição. Não convenci. E fiquei balançado por dentro.
Anos depois, já no
Rio, expliquei isso ao outro jovem enrolado na bandeira do Brasil, que aliás
havia sido excelente aluno. Para relativizar sua decepção, confessei que eu
havia cometido erros semelhantes, que minha vida inteira foi uma sucessão de
equívocos políticos, que naquele exato momento eu podia estar enganado, que por
isso sempre ouvia quem pensava diferente, que era melhor errar do que se
omitir, mas que minha obrigação era dizer-lhe o que estava pensando, embora
consciente de que eu podia estar equivocado.
Agora, tomo
conhecimento que na UFAM, o professor da Faculdade de Educação com quem aqui me
solidarizo e que atende pelo sugestivo nome de Paulo Freire foi hostilizado por
haver furado a greve, com direito à nota oficial de repúdio e à execração
pública. Antes de contar o acontecido, advirto que ele é primo do Pão Molhado,
que vem a ser meu sobrinho. Foi assim.
Uma amiga do Paulo
Freire lhe contou que a filha queria acampar na reitoria junto com o namorado e
lhe havia dito que "pelo menos assim eu posso dormir com ele", em tom
de brincadeira. Com o mesmo espírito, o professor fez uma charge e postou no
facebook apenas para os amigos. Um "amigo" leu e repassou para o
Comando de Greve que publicou nota de repúdio ao professor por estar
desrespeitando a mulher e "debochando do movimento estudantil" na
luta "para defender a universidade pública, gratuita e de qualidade
socialmente referenciada", seja lá o que isso signifique.
A nota de um falso
moralismo, absolutamente descontextualizada, expõe a entidade ao ridículo, não
mobiliza, não fortalece a organização e nem o movimento. Trata-se de notável
contribuição ao FEBEAUFA - o Festival da Besteira que Assola a Universidade
Federal do Amazonas. Francamente, a que ponto de desagregação chegamos! Uma
nota do Comando de Greve da Faculdade de Educação e logo contra um professor
que atende pelo nome de Paulo Freire. Francamente! Esse pessoal não tem mesmo o
que fazer. E aí fica dando tiro no pé.
*
Jornalista e historiador
Nenhum comentário:
Postar um comentário