Discussão
no Face com a neta de um comunista histórico
* Por
Urariano Mota.
No relato a seguir não
há qualquer ficção. Qualquer semelhança com pessoa viva ou conhecida não é mera
coincidência.
Tudo se passou na
página do Facebook da neta de um comunista histórico. Ele, um militante já
falecido, não tem culpa. E por esse motivo deixo de informar o seu nome, e o da
neta, em atenção à memória de um intelectual que honra até hoje o Recife.
Era 29 de dezembro do
ano que passou. Nessa época, ao se aproximar o dia 31, todos ficamos de repente
sentimentais, porque tendemos a ver no fim do calendário a marca do fim de um
tempo também em nossas vidas. Daí que a neta se lembrou de Paulinho da Viola,
daquela bela canção “Para um amor no Recife”, a cidade mui amada do avô. Daí
que eu, em pura e ingênua consciência, uni os dados que se jogavam no Face:
post de uma amiga descendente de comunista, composição belíssima de Paulinho,
mais a posse da ex-presa política na presidência do Brasil. Então postei nos
comentários:
“A propósito, copio do
texto ‘A presidenta Dilma, Paulinho da Viola e os brasileiros’,
http://blogdaboitempo.com.br/…/a-presidenta-dilma…/ :
‘Então houve ‘Para um
amor no Recife’. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária
de Dom Hélder Câmara. As boas e as más línguas (principalmente) acrescentavam
que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o
sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência
serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: A razão por que
mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero
fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da
camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça,
por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo
passe, para beijar você . Essa é uma canção que só fez melhorar ao longo de
todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais
existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que
entra quase incidentalmente no título’ ”.
Meus amigos e meus
inimigos, a realidade não suporta nem apoia a consciência pura, mais conhecida
pelo nome de consciência burra. Eis o que recebi de volta da senhora neta:
“Céus, mas onde é que
você foi enfiar o pobre Paulinho?”
Ao que eu, com um leve
pé atrás, respondo:
“Em lugar muito
próprio: na resistência contra a ditadura”.
E a esta altura recebo
o comentário mais claro da netinha:
“Um lugar que não é
eterno, como se nota hoje. Logo ela, que apoia outras ditaduras…”.
Olhem, a patada era
tão imprevisível, que li e não vi – aquele reflexo em que vemos e nos negamos a
ver, porque não acreditamos no que os olhos mostram – e apenas aceitei a
primeira parte da frase “Um lugar que não é eterno”. E respondi logo, no
automático:
“Longa é a arte”.
Ao que, depois de me
dar conta da frase inteira, completei:
“Me surpreende muito
este seu comentário: ‘Dilma apoia outras ditaduras’.”
E a senhora neta, à
beira da raiva, mas ainda conservando as aparências:
“Não sei por que o
surpreende. Mas o fato é que postei uma música linda que nada diz respeito a
Dilma. E ponto”.
Então fomos à
definição dos termos, e postei:
“Eu relacionei o post
com a ditadura, – tem a ver, não? – e com a presa política Dilma, que acalmava
as companheiras torturadas com essa música de Paulinho. Alguma reação a esses
fatos históricos e humanos?”.
Então a neta biológica
se fez mais pura e somente herança de sangue:
“Vou pedir sua licença
para apagar todos esses comentários. Afinal, o post é meu e me dou o direito –
com razão, a meu ver – de não suportar Dilma. Será só o tempo de lê-lo que tiro
todos. O fato de ter sido presa política não é um título honorífico, muito
menos vitalício – vide Zé Dirceu e seus cúmplices”.
É claro que nos
limites de um post não cabia a discussão que mostrasse uma justiça política, de
réus condenados antes do julgamento, em um processo que a mídia chamou de
“mensalão”, fenômeno batizado assim por um corrupto dos mais canalhas da
República. E talvez até coubessem algumas linhas, se os genes irados não
exibissem o nível em que se encontram, quando chamam de ditadura a Venezuela,
Cuba e outros países do “eixo do mal”. A neta do comunista histórico do Recife
não era a pessoa que a consciência burra pensava que fosse. Então comentei por fim:
“Não se aperreie não.
Eu pensei que a neta herdasse também o espírito socialista do avô. Fui, e pelo
visto, já vou tarde”.
O verbo “aperrear”
acima foi escrito como uma senha de pernambucano, de nordestino, para alguém
cosmopolita. (Vocês nem imaginam que haja recifenses longe da terra que se
desejam de outros mundos.) O fato é que rompemos uma amizade que nunca havia
existido. E tudo a partir da música de Paulinho e do elogio para a presidenta
Dilma. Sei que isso contado parece absurdo, incrível, mas foi assim. Contei o
caso como caso foi.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Até que avançou de modo civilizado, apesar do desconforto. Nas redes sociais, desde o orkut, as agressões são mais sangrentas, quando as posições são opostas.
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