A teoria de Ihering
* Por
Pedro Lessa
Na teoria de Ihering
não há lugar para um direito ideal. O direito positivo nasce da luta dos
interesses. Entre direito e verdade nada há de comum. O que determina a
promulgação de uma nova regra de direito é o aparecimento de um novo e
momentâneo interesse. Ainda neste ponto o ensinamento de Ihering não se
conforma com os fatos. Constantemente vemos condenada pela opinião dos
competentes uma instituição, ou preconizada a necessidade de promulgar normas
jurídicas sobre uma série de atos que escapam à sanção do direito.
Nada mais comum do que
julgar uma sociedade que certas leis precisam ser reformadas. Qual o critério
que nos guia ao formarmos esses conceitos? É a observação dos resultados
colhidos da aplicação de um dado instituto jurídico que nos revela que o
legislador, ao promulgar a lei, não apreendeu uma necessidade social: ou a
dedução de uma verdade científica do domínio da antropologia, ou das ciências
sociais particulares, que mostra que uma condição de vida e desenvolvimento
social deve ser assegurada pela coação social. Também a sociedade se modifica.
Como organismo, ou ser vivo, que é, passa por uma constante evolução, e a cada
período de seu desenvolvimento se liga uma série de necessidades peculiares.
Assim, ao lado das
necessidades comuns a todos os organismos sociais, constantes, permanentes, há
outras próprias de cada fase social, o que faz que ao lado dos princípios e das
normas jurídicas universais e imutáveis haja instituições variáveis. Nem se
diga haver contradição entre esta verdade e o conceito de que o direito é um
conjunto de leis científicas, que servem de base à formulação das normas
jurídicas.
O homem
fisiologicamente está sujeito a leis imutáveis, e a leis peculiares a cada
idade. A alimentação da infância não é a da juventude. A higiene da maturidade
não é a da decrepitude. As verdades que aqui ficam expostas são a cada momento
implicitamente reconhecidas pelos adeptos de todas as escolas. O sectário da
escola teológica, quando coerente, ortodoxo, arquiteta todo o edifício do
direito sobre os alicerces fornecidos de uma lei destinada a assegurar uma das
condições primordiais da existência social, ou a promulgação de uma norma
jurídica que atenta contra essas condições, exclama: onde irá parar a
sociedade, se as coisas continuam assim?!
O racionalista harmônico
entende que todo o direito não passa de um desenvolvimento, ou antes aplicação,
do princípio do justo, dado pela razão como faculdade intuitiva; mas, quando se
lhe depara uma dessas inversões da ordem social, que põem em perigo a vida
coletiva, por sua vez apela para o instinto de conservação individual e social,
como o mais poderoso argumento contra o abuso perpetrado. No âmago de todas as
doutrinas filosófico-jurídicas está o reconhecimento implícito de que o direito
nada mais faz do que formular normas de conduta cujo conteúdo é, ou deve ser,
uma verdade científica, o conhecimento de uma condição de vida ou de
desenvolvimento da sociedade.
Se na realidade a
missão do direito consiste em, verificada uma condição de vida e
desenvolvimento da sociedade, dar-lhe a forma de norma de conduta e
assegurar-lhe a realização pela coação do Estado, e se o processo de que
dispomos para conhecer as condições de vida e desenvolvimento da sociedade se
reduz ao método positivo, à indução e à dedução, porque não havemos de aceitar
a doutrina que sistematiza as verdades implicitamente reconhecidas por todas as
outras escolas? Quer-se saber qual a idade em que a norma jurídica deve
permitir o casamento. A resposta de todas as demais escolas não tem a coerência
e a precisão da que nos oferece a teoria científica do direito, a qual nos
manda consultar a fisiologia, parte da antropologia que estuda os fenômenos da
vida e as funções dos órgãos. Tem o legislador de fixar a substância de que se
deve fazer a moeda. Cumpre-lhe indagar o que ensina a respeito a economia
política. É mister promulgar uma constituição para um povo. Antes de fazê-lo,
incumbe ao legislador constituinte examinar a história política dos povos, e
apurar qual a organização do poder público que mais eficazmente tem garantido a
liberdade, a ordem e o progresso. E assim por diante.
A formulação das
normas jurídicas não é uma tarefa do empirismo, mas um trabalho científico. Não
basta pesquisar isoladamente, e no momento de formular cada norma, ou de criar
cada instituição jurídica, as verdades particulares que devem servir de molde à
regra de direito. Importa elevar-se aos princípios, às verdades gerais
fundamentais, espiritualizar a ciência pela filosofia.
(Estudos de filosofia
do Direito, 1912).
*
Jurista, magistrado, político, professor e escritor, membro da Academia
Brasileira de Letras.
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