500 ou 515 anos de corrupção 1
* Por
Mouzar Benedito
Em 2005, quando
estourou o escândalo do “Mensalão”, a revista Caminhos da Terra me pediu uma
matéria grande sobre a corrupção no Brasil, desde suas origens. Pesquisei
bastante e fiz. Acredito que, pela situação em que o Brasil vive no momento,
vale publicá-la novamente, neste blog. Não é para “justificar” o que acontece
agora. É injustificável. Talvez sirva para explicar um pouco.
A matéria foi
publicada com o título “500 anos de corrupção”. Na verdade, eram 505, pois tudo
começou no ano de 1500. Em 2015, completam-se então 515 anos.
Obviamente, ela não
inclui o que aconteceu depois de 2005. A corrupção não deixou de acontecer, nos
níveis federal, estadual e municipal, nos poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário (este, por enquanto intocável! Faz o que quer), nas empresas, na
polícia, nas mais variadas instituições e também na vida cotidiana de uma
grande parte da população. Pequenos corruptos fazem pose de indignados, mas se
tivessem oportunidade…
A corrupção
“pós-mensalão” está ainda fresca na cabeça de quem quer ter memória. E vai
continuar existindo, não há como duvidar.
Mas nos dias de hoje há uma novidade, que espero valer daqui pra frente
para políticos de todos os partidos, empresários, banqueiros, empreiteiros,
seja quem for: a história, citada na matéria, de que no Brasil cadeia é só para
os “três P – pobres, pretos e putas”, está um pouco abalada.
Aí vai o texto,
lembrando que para publicar na revista ele foi editado e – isso é normal – um
pouco modificado pelos editores. Alguns trechos caíram, acredito que por falta
de espaço. Aqui, vai do jeito que fiz.
“Foi pra isso que
fizemos a revolução?”
Esta frase foi
pronunciada em tom de desencanto por muitos militares, quando começaram a
pipocar casos de corrupção envolvendo gente da cúpula do governo, nos anos 1970
e 80. Os decepcionados eram aqueles que acreditaram que em 1964 houve mesmo uma
revolução e que ela veio não apenas para espantar o “fantasma do comunismo”,
mas também para acabar com a corrupção.
Sentimento semelhante
vem agora de gente que entrou na política justamente combatendo tanto a
ditadura quanto a corrupção, militantes que se dedicaram por mais de vinte anos
ao PT, até conseguir colocar um ex-operário na presidência da República.
Ninguém duvida que a
corrupção não é novidade, pois muitos (talvez a maioria) dos ocupantes de altos
cargos políticos – nos governos federal, estaduais e municipais – saem desses
cargos bem mais ricos do que entraram. Isso é tão comum que pareceu algo
inusitado a volta de Olívio Dutra ao emprego de bancário, quando terminou seu
mandato de prefeito de Porto Alegre, em 1987. Algo realmente incomum num país
em que boa parte dos eleitores aceita e até louva político que “rouba mas faz”,
em que historicamente a corrupção faz parte do cotidiano público e privado,
onde sonegação de impostos por empresas é quase obrigação, e onde até a igreja
chegou a contrabandear usando santos ocos cheios de ouro e pedras preciosas.
A novidade do que
acontece agora é que no foco da crise está o partido que elegeu como bandeira
principal o combate à corrupção, que era aceito até pelos opositores como
inatacável neste sentido.
Os danos da crise
atual são muito grandes, pois em grande parcela dos decepcionados cria-se a
sensação de que o Brasil não tem jeito, que todos os políticos são iguais – o
que é festejado pelos corruptos de outros partidos – e que não vale a pena se
envolver com política. Ou pior: que o Brasil precisaria de um regime duro, até
mesmo uma ditadura, coisa que já foi experimentada e não deu certo, pois em vez
de acabar com a corrupção impediu-se apenas que ela fosse noticiada, sufocando
a imprensa.
Só no Brasil?
Uma das conclusões
falsas que até parte da mídia abraça é que a corrupção é um fenômeno típico
brasileiro. Não é. Ela existe desde muito antes do descobrimento do Brasil.
Sempre esteve presente em todos os grupos e em todas as nações, não é um
fenômeno exclusivo de uma sociedade ou de um momento de seu desenvolvimento,
mas as práticas são diferentes em cada país.
Uma prova de que ela
não é exclusiva do Brasil é um ranking divulgado pela ONG Transparência
Internacional, em outubro de 2004, que traz uma espécie de ranking da corrupção
de 146 países pesquisados. A lista começa pelos países menos corruptos e
caminha progressivamente para os mais corruptos, e o Brasil aparece em 59º
lugar. Nos primeiros lugares estão países com alto grau de desenvolvimento
humano e distribuição de renda mais equilibrada. A Finlândia encabeça a lista,
como país menos corrupto. Nos últimos lugares estão países subdesenvolvidos e
com péssima distribuição de renda, como Haiti e Bangladesh, os mais corruptos.
Fica claro também que
o subdesenvolvimento é um fator de aumento da corrupção. Países
subdesenvolvidos, além do tradicional abuso de poder e outros quesitos, têm
fatores institucionais que favorecem a corrupção, como o excesso de
regulamentações. A profusão de leis dá oportunidade para o surgimento de
pessoas “espertas” que se tornam especialistas em decifrá-las e intermediar
processos e ações. São pessoas que, na linguagem popular, conhecem o caminho
das pedras, sabem quem decide e como manipular as decisões. Esse emaranhado de
leis, muito apreciado por certos políticos, traz um embutido um velho ditado
popular: criar dificuldades para vender facilidades.
Início viciado
Muita gente acredita
que um fator determinante na criação de uma mentalidade que favoreceria a
corrupção no Brasil é o emprego de degredados na colonização. Eram pessoas que
cometeram crimes em Portugal e foram condenados a cumprir suas penas aqui,
forma utilizada para povoar com portugueses o Brasil e outras colônias
portuguesas. De fato, só com Tomé de Souza, primeiro governador geral do
Brasil, vieram quatrocentos degredados.
Mas, embora Duarte
Coelho, dono da capitania de Pernambuco, dissesse que eles eram o veneno da
terra, que com eles só a forca resolvia, muitos historiadores discordam da
periculosidade dos degredados, já que, dado o interesse em mandar muita gente
para cá, qualquer pequeno delito era motivo para o degredo. Cerca de duzentos
delitos eram punidos com o degredo. Até adúlteros e alcoviteiros eram
degredados. O título de um livro do historiador Geraldo Pieroni já mostra os
degredados não eram “bandidos”: Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os
degredados do Brasil-Colônia. Nele, o autor afirma que o “nascimento do nosso
país” se deveu a esses degredados por delitos de ordem religiosa ou moral.
Eduardo Bueno,
jornalista e pesquisador da nossa História, autor de vários livros sobre o
descobrimento e a colonização do Brasil, insistindo em ressalvar que é preciso
tomar cuidado com generalizações, afirma que o problema “não está no degredado
e sim nos que tinham o poder de enviar degredados para o Brasil”. Segundo
afirma, a corrupção do Brasil começou mesmo antes do descobrimento, já que nos
impérios português e espanhol – chamados “impérios papeleiros” por causa da
burocracia que criava um amontoado de leis que geravam uma gigantesca estrutura
paralela, à margem do poder central – havia um núcleo de corrupção muito
grande, de desvio de verbas, negociatas e dribles na justiça. Nessa burocracia e nesse tipo de “império
papeleiro”, para Bueno, está o germe do sistema corrupto que persistiu e
persiste.
Hoje é comum dizer que
no Brasil cadeia é só para os “três Pês” (pobres, pretos e putas), referindo-se
à impunidade dos ricos, e isso é uma herança também dessa tradição ibérica em
que aos cavaleiros – ou seja os ricos que tinham cavalos, contrapondo-se aos
peões, que andavam a pé – ficavam por lei isentos das chamadas “penas vis”, não
podiam ser espancados, amarrados em pelourinhos ou condenados à morte. Isso,
fora a venalidade da justiça e o tráfico de influências.
A carta de Pero Vaz de
Caminha, que saiu do Brasil em 1º de maio de 1500, depois de dar a boa nova da
descoberta, ou “achamento”, do Brasil, trazia em seu final um exemplo dessa
tradição. Nela, Caminha aproveita a ocasião para pedir a volta a Portugal de
seu genro degredado em São Tomé, na África, por ter roubado uma igreja e
espancado o padre.
E já na fundação da
nossa primeira capital, há um exemplo claro de corrupção, com superfaturameno
na construção de Salvador, por empreiteiras, entre 1549 e 1556.
E os holandeses?
Apesar do príncipe Maurício de Nassau ser um homem culto e ter trazido
cientistas e artistas para Pernambuco, com ele vieram também, como
colonizadores, pessoas que não ficavam atrás dos degredados portugueses. Aliás,
teve origem na Holanda a história de que não existe pecado ao sul do equador.
Aqui valia tudo.
Tempos imperiais
Tradição
pré-descobrimento, a corrupção continuou aqui com a chegada família real
portuguesa, inculta e grossa, em 1808. Dom João VI é tratado pelos
historiadores como sujo e balofo, grosseiro no trato com as pessoas. No tempo
em que esteve no Brasil, de 1808 a 1821, a corrupção se alastrou
consideravelmente.
Dom Pedro I, seu
substituto, era mais estadista, mas, além da queda pela vida mundana, tinha na
conta de seus amigos pessoas muito pouco recomendáveis, que assumiram posições
importantes no Império. Entre eles o famoso Chalaça, apelido do português
Francisco Gomes da Silva, considerado o homem mais poderoso do período.
Companheiro de farras de Dom Pedro, ele nomeava e demitia quem queria.
Em seguida veio Dom
Pedro II, um homem culto, mecenas, poliglota, apreciador das artes e da
ciência… mas sem nenhuma aptidão para governar. Ficava enfastiado com as coisas
do Estado. Com isso, fazia vistas grossas para os desmandos e a corrupção,
inclusive a corrupção eleitoral. Por isso era chamado de Pedro Banana. Seu
reinado era repleto de festas, que aconteciam como se o país estivesse às mil maravilhas.
Depois de 1884, seu
governo foi ficando insustentável, por causa da chamada “Questão Militar”, que
teve como estopim a descoberta de corrupção num destacamento do Exército no
Piauí. Só se falava em corrupção e crise, mas mesmo assim ele ficava alheio a
tudo. No dia 9 de novembro de 1889, ofereceu uma grande festa para os oficiais
de um navio chileno, com três mil convites disputados pela elite do Rio.
Champagne, camarão e muito luxo, como se não houvesse crise. Esta festa,
conhecida como baile da Ilha Fiscal, foi considerada o canto do cisne do
Império, que caiu menos de uma semana depois, no dia 15.
E veio a República
Com a República não
mudou muito, a corrupção continuou, tanto que as mudanças radicais de governos
sempre tiveram entre as causas motivadoras – pelo menos nos discursos – o
combate à corrupção. Isso ocorreu, por exemplo, em 1930 e 1964. Sem contar que
desde o governo Jânio Quadros, que foi eleito tendo como símbolo uma vassoura,
que seria usada para “varrer” os corruptos do governo anterior, quase todos que
ocuparam o poder pela via eleitoral falavam em combate à corrupção do seu
antecessor. Fernando Collor de Mello combateria a corrupção de José Sarney,
Fernando Henrique Cardoso combateria corrupções anteriores e Lula viria acabar
com a corrupção do período FHC.
Nem tudo, porém, foi
inútil. Um caso exemplar foi o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Mas a
imprensa, que colaborou bastante para esclarecer alguns casos, vitimada pelo
denuncismo, cometeu pecados indesculpáveis, como foi o caso do deputado Ibsen
Pinheiro (PMDB-RS), que presidiu a Câmara dos Deputados na época da cassação de
Collor e depois foi cassado também, por terem sido encontrados em sua conta um
milhão de dólares, segundo a revista Veja. Só que a matéria tinha um erro:
muitos anos depois foi descoberto que no dinheiro de sua conta o repórter pôs
três zeros a mais. Na realidade, ele tinha mil dólares.
Mas se a imprensa
comete erros, pior é quando ela não existe. Não há informação. Até o início do
século XIX não tivemos nenhum jornal. O primeiro jornal brasileiro nem surgiu
aqui, foi em Londres, já que a imprensa era proibida no Brasil. O Correio
Braziliense, criado por Hipólito da Costa, começou a circular em 1º de junho de
1808 e tinha entre seus propósitos denunciar a corrupção.
O primeiro jornal
impresso no Brasil veio pouco depois disso, em setembro de 1808. Era A Gazeta
do Rio de Janeiro, que já nasceu sob censura. Dois anos depois uma carta régia
autorizava o funcionamento de uma tipografia em Salvador, mas com censura do
governador e do arcebispo!
A censura foi
praticada até com muita violência, também, durante o Estado Novo (1937-45) e a
ditadura iniciada em 1964 e este é um motivo por que a corrupção parecia menor.
Já próximo ao final da
ditadura, em 1981, havia muitas denúncias de corrupção e chegou a ser criada
uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias como o
chamado “escândalo Lutfalla”, de tráfico de influência de Paulo Maluf para a
concessão de altos empréstimos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico, atual BNDES) a empresas da família Lutfalla, à qual pertence Sylvia
Maluf, esposa do ex-governador, em estado pré-falimentar. Mas o partido do
governo – o PDS – era majoritário e a CPI foi abortada. Em 2001, outra CPI
também deveria apurar a corrupção, com 16 pontos a serem investigados, entre os
quais o tráfico de influência, contribuições eleitorais irregulares, fraudes na
concessão de incentivos fiscais e caixa 2 nas campanhas eleitorais, mas o
presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu convencer vinte parlamentares a
retirarem suas assinaturas do pedido de CPI e ela não foi instalada.
Há também momentos de
cumplicidade da mídia com o poder, como no processo de privatização, quando,
por exemplo, a Companhia Vale do Rio Doce foi avaliada inicialmente em 120
bilhões de dólares e acabou vendida por 3,2 milhões e a mídia apoiou ou calou.
Algumas histórias de
corrupção no Brasil
O governador e seu
engenho
Em 1597, o governador
geral do Brasil era Dom Francisco de Sousa, apelidado Francisco das Manhas. E
pelo jeito, era mesmo manhoso: ele foi acusado de desviar dinheiro público para
o seu engenho. Mas foi mantido no cargo.
Nassau e a classe
dominante
Ordenança de Maurício
de Nassau a seus sucessores, durante a ocupação holandesa: “Convém que VV. SS.
procurem angariar e manter, por meio de favores e de dinheiro, alguns
portugueses particularmente dispostos e dedicados para com VV. SS., dos quais
possam vir a saber em segredo os preparativos do inimigo (…). Esses portugueses
devem ser os mais importantes e honrados da terra, e lhes será recomendado que,
exteriormente, se mostrem como se fossem dos mais desafetos aos holandeses”.
Traidor premiado
Os cofres públicos já
foram também usados para premiar delatores. Um exemplo é Joaquim Silvério do
Reis, que denunciou a Inconfidência Mineira. Ele era conhecido como mau pagador
em Ouro Preto, estava cheio de dívidas, e depois da delação ficou tão malvisto
que temia ser assassinado. O governo resolveu o problema dele, que fugiu dos
credores e dos que o odiavam pela traição, indo para uma fazenda que recebeu de
graça, no Piauí, presente governamental. E para não correr risco de notícias
dele chegarem aos desafetos, seu sobrenome foi mudado para Montenegro.
(CONTINUA)
*
Jornalista
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