Um
livro com música, para ler e guardar
* Por
Mouzar Benedito
Há certos livros que são ótimos, mas
que a gente lê e pode passar pra frente, porque não vai ler de novo.
Não é o caso de “Quem foi que
inventou o Brasil?”, de Franklin Martins. Este é para ir lendo aos poucos e
guardar para sempre, para consultar quando necessário ou simplesmente quando
baixar a curiosidade sobre alguma música que imaginamos que tenha a ver com o
momento político em que ela foi composta.
São três volumes, abrangendo um
século da história do Brasil, de 1902 a 2002, retratando acontecimentos
políticos que serviram de tema para músicas. O autor diz que não é um livro
sobre música, e sim um livro com música.
Franklin Martins, que foi militante
da esquerda armada durante a ditadura, sendo um dos mentores do sequestro do
embaixador dos Estados Unidos para trocar por presos políticos que sofriam nas
prisões, e no governo Lula ocupou a Secretaria de Comunicação Social, é também
– o que eu não sabia – um pesquisador aparentemente compulsivo sobre músicas
que têm também um sentido político.
Eu gosto de saber como e porque
certas músicas foram compostas e tenho me deliciado lendo os dois volumes já
publicados, parando um pouco para admirar as muitas fotos históricas e outras
ilustrações. O primeiro com mais de 600 páginas, traz 473 composições feitas entre
1902 e 1964, com a história e a letra delas. O segundo volume, com mais de 500
páginas, traz 310 canções e abrange os 21 anos de ditadura. E está para sair o
terceiro volume trazendo mais 330 composições feitas de 1985 a 2002.
A editora é a Nova Fronteira.
Embora a gente se lembre mais de
músicas de protesto, especialmente do período da ditadura, quando os
compositores tinham que fazer verdadeiras mágicas mentais para enganar os
censores e transmitir suas mensagens, há também registros de músicas “a favor”
até dos ditadores, jingles como o lembradíssimo “varre varre, vassourinha…”
feito para a campanha de Jânio Quadros, e de músicas cuja letra parece nada ter
a ver com protestos, mas na época tinham esse sentido.
É o caso da primeira canção
apresentada no livro, “As laranjas da Sabina”, composta e popularizada numa
fase em que não havia gravações no Brasil. Só foi gravada em 1902.
Sabina era uma mulher que vendia
laranjas em frente à Escola de Medicina do Rio de Janeiro, e em julho de 1889,
um delegado a proibiu de continuar suas atividades ali. Os estudantes fizeram
uma passeata bem-humorada protestando contra a proibição. A música, que
simplesmente defendia o direito da Sabina vender suas frutas, acabou virando
uma bandeira republicana, praticamente um hino.
Há algumas histórias bem conhecidas,
como a composição de “Soy loco por ti América”, de Capinam e Gilberto Gil.
Caetano Veloso estava numa reunião para selecionar músicas para um disco, em
outubro de 1967, quando recebeu a notícia da morte de Che Guevara na Bolívia.
Telefonou então para Capinam, pedindo que ele escrevesse a letra e Gilberto Gil
compôs a música.
Outra história bem conhecida é de
Chico Buarque, que chegou a ser tão proibido que bastava ter o nome dele como
compositor que a música era proibida pela censura, durante o governo Geisel.
Adotou o apelido Julinho de Adelaide e fez um rock muito gozador: “Você não
gosta de mim / mas sua filha gosta…”.
Uma música que me lembro e achei
completamente sem sentido quando foi lançada está no livro também. Viajando de
trem de Belo Horizonte a Salvador, no mesmo vagão uma moça cantarolava sem
parar “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos…”. Pensei: “Que música besta!”. Em
Salvador fiquei sabendo que era de Roberto Carlos e não me surpreendi, achei
que era musiquinha bem alienada e pronto.
Só muitos anos depois é que veio a
público a história de que Roberto Carlos visitou Caetano Veloso exilado em
Londres, numa época em que Caetano usava um cabelão típico de um pessoal
alternativo. Antes de ser mandado para o exílio, raparam o cabelo dele, mas
nessa altura ele já estava cabeludo de novo. E aí sim, vi o sentido em falar
que “debaixo dos caracóis dos seus cabelos, uma história pra contar de um mundo
tão distante…”.
E já que citei Roberto Carlos, cito
também Ataulfo Alves, sambista de primeira mas que a gente nunca imagina que
tenha feito uma música contra Hitler. Pois fez (ainda não a encontrei no livro
do Franklin, mas deve estar nele). Chama-se “Abaixa o braço”, ironizando a
saudação nazista. A pronúncia do nome do chefe nazista, na sua música era
“Adolfítler”. O começo dela é assim:
Abaixa o braço, deixa de teima,
Lugar de palhaçada é no cinema.
Seu Adolf Hitler, por que tanta
valentia,
Se nós queremos é democracia?
Numa viagem num vapor do rio São
Francisco, havia um comandante bem escroto, que tentava criar um monte de
proibições para o pessoal que viajava na segunda classe, e eu e um amigo, o
Marinho, adaptamos essa letra para protestar contra ele.
Cantamos pelo vapor inteiro, começando
pela segunda classe, invadimos a primeira (proibida para os “da segunda”),
acompanhados por um multidão, e foi um verdadeiro motim em pleno ano de 1976.
Só mudamos “Adolfítler” por “cu mandante”…
Bom, paremos por aqui. Que leiam o
livro e viagem nas histórias dessas muitas músicas.
E
tem mais: não só quem tem os livros, mas qualquer pessoa, pode entrar no sitewww.quemfoiqueinventouobrasil,com, que está aberto a todo
mundo, para ouvir os “fonogramas” dessas músicas todas. Entrem nele, que vale a
pena.
*
Jornalista
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