José
Dirceu, Alice no País das Maravilhas e Hiroshima
* Por
Urariano Mota
Os apelos da política
imediata parecem alienar a gente da história do mundo. Nesta semana,
completam-se 70 anos do genocídio das bombas sobre Hiroshima e Nagasáqui. No
dia 6, o governo dos Estados Unidos lançou a bomba atômica sobre Hiroshima. No
dia 9, ampliou o seu crime sobre o povo de
Nagasáqui. E no entanto, crimes tamanhos contra a humanidade parecem
desaparecer ante os apelos urgentes da política nacional, que exigem a reflexão
imediata, porque um golpe de Estado está em marcha.
Esta semana, como um
passo a mais que leve ao presídio e à
desmoralização do líder Lula, se deu a nova prisão do ex-ministro José Dirceu.
Ele, que já se encontrava aprisionado, talvez porque pudesse fugir da prisão
domiciliar, foi novamente preso e transferido para a polícia federal da conspiração de
Curitiba. Digo da conspiração porque
delegados federais da Lava Jato já insultaram Lula e Dilma nas redes sociais.
Mas o ministro da Justiça, no Olimpo, não tomou conhecimento.
Continuemos. Quando
houve o julgamento de José Dirceu, naquela primeira farsa, a do Mensalão,
escrevi que ele havia sofrido um julgamento de Alice. Ou seja, aquele julgamento que Lewis Carrol escrevera para
Alice no País das Maravilhas. Por sinal, no mês passado se completaram 150 anos
da publicação do livro. E quanto é atual no absurdo e arbitrariedade da cena do julgamento de Alice. Acompanhem e
sintam a semelhança profunda que há ali e nas páginas de José Dirceu esta semana.
“- Não, não! - berrou
a Rainha. - Primeiro a sentença, depois o veredicto”.
Se substituímos a
Rainha pelo conjunto imprensa e tribunal do Brasil, perceberemos que aqui
também a condenação estava antes sentenciada. Mas continuemos com Alice:
“Neste momento o Rei,
que estivera ocupado por algum tempo escrevendo em seu caderno de notas,
gritou:
- Silêncio! - e leu:
‘Artigo Quarenta e Dois: Todas as pessoas com mais de um quilômetro e meio de
altura devem deixar o tribunal.’
Todo o mundo olhou para
Alice.
- E não irei de jeito
nenhum - disse Alice; - além do mais,
este artigo não é legal: você acabou de inventá-lo.
O Rei empalideceu e
fechou apressadamente seu caderno de notas. ‘Façam o seu veredicto’, disse ao
júri, com voz baixa e trêmula....
- Com licença de Vossa
Majestade, ainda há provas a examinar - disse o Coelho Branco dando um salto: -
este documento acaba de ser encontrado.
- Do que se trata?
- indagou a Rainha.
- Ainda não abri -
respondeu o Coelho Branco. - Mas parece ser uma carta, escrita pelo prisioneiro
para alguém.
- Só pode ser isso -
disse o Rei, - a menos que tenha sido escrita para ninguém, o que não é muito
usual.
- A quem é endereçada?
- perguntou um dos ministros.
- Não é propriamente
endereçada... - disse o Coelho Branco, -
na verdade, não há nada escrito do lado de fora. Enquanto falava, desdobrou o
papel, acrescentando: - Nem é uma carta, afinal de contas: são versos.
- Estão escritos com a
caligrafia do prisioneiro? – perguntou outro.
- Não, não estão -
respondeu o Coelho Branco - e isso é o mais estranho de tudo. (Todos pareciam
perplexos.)
- Ele deve ter imitado
a caligrafia de outra pessoa – disse o Rei. (Todos animaram-se outra vez.)
- Com licença de Vossa
Majestade - disse o réu, - eu não escrevi isso, e ninguém poderá provar o
contrário: não há nenhum nome assinado embaixo.
- Se você não assinou
- disse o Rei - isso só piora a situação. Você certamente deve ter feito algo
de errado, ou então teria assinado seu nome como qualquer pessoa honesta...
- Isso prova a sua
culpa, é claro - disse a Rainha: - Logo, cortem a sua cabeça!”
Precisa dizer mais? O
simulacro desse julgamento, da sentença que vem antes das provas, é repetido
aqui mais uma vez na Lava Jato. Aqui, também, os critérios de condenação mudam
conforme o objeto e objetivo do momento. Antes se denunciava um cartel de
empresas na Petrobras que inflacionava preços para repassar uma parte ao
Partido dos Trabalhadores. Agora, se estende ao governo Lula, que sob o comando
do representante de Deus, mais conhecido pelo nome de José Dirceu, comprava
apoio de deputados e senadores. O alvo é Lula, evidentemente. José Dirceu é a
ponte que leva à maior liderança popular do Brasil.
Como da vida de José
Dirceu não sairá uma delação, há de se procurar
um delator com suficiente leviandade e cinismo para afirmar “Lula foi
subornado por mim!”. E esta será a prova para a sentença prévia: cortem a
cabeça do ex-presidente.
Enquanto o congresso
sob a cabeça de Eduardo Cunha se articula para o impeachment da presidenta
Dilma, e se fecha o cerco para a desmoralização da esquerda no Brasil, o mundo
inteiro lembra os 70 anos das bombas sobre os japoneses, jogadas pelo império
dos Estados Unidos. Mas se olharmos
bem, existe um fio comum que une as bombas de Hiroshima e Nagasáqui às últimas
prisões da Lava Jato. O vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, autoridade
em energia nuclear, que contrariava os interesses-norte-americanos, está
preso. E agora, antes de Lula, os fascistas
avançam sobre José Dirceu.
No belo poema A Rosa
de Hiroshima, Vinícius de Moraes escreveu:
“Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se
esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada”
Para os desdobramentos
do que se convencionou chamar Lava Jato, talvez possamos dizer: pensem nas
crianças, nas meninas, nas mulheres, nas feridas que se abrem com a ação da
direita a mando do império dos Estados
Unidos. Eles fazem enfim a mesma rosa radioativa, estúpida e inválida, a rosa
com cirrose que destrói as conquistas do último governo popular depois de João
Goulart. A antirrosa que é lava, mas de
vulcão sobre a Petrobras e o Brasil.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Texto pesado e necessário.
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