Fotos João Marques Fonseca
Festas
de Agosto: devoção, cultura, tradição e família
* Por
Mara Narciso
Duas pessoas da minha
família desfilaram este ano no Terno de Nossa Senhora do Rosário, de Mestre
Zanza: Marcos Narciso e Lílian Amaral. Índios, negros e portugueses denominados
caboclinhos, catopês e marujos, respectivamente, além da corte imperial,
rezando para Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo
são o motivo das Festas de Agosto em Montes Claros há 176 anos, 18 antes da
emancipação.
Nem sempre os devotos
festejaram seus santos na mesma época, mas como as chuvas atrapalhavam, um
padre decidiu juntá-las num período sem chuvas. As pessoas simples, de pouco
estudo, sem posses, e ricas em fé e obstinação, carregaram as festas ano após
ano, mesmo quando era impossível. Muitas vezes elas ameaçavam acabar, mas o
amor pelos santos era maior, e lá adiante surgiam os catopês, marujos e
caboclinhos, descendo as ruas, muitas vezes de pés descalços, ou até com fome,
numa imagem de desvalidos, contrapondo-se com a sinceridade das suas vozes e os
ritmos febris da sua devoção.
Neste ano os Correios
imortalizaram os seis mestres dos ternos das Festas de Agosto em selos de
circulação nacional. A classe média ajuda financeiramente, sendo festeiros que
garantem a alimentação e vestem os filhos de reis e rainhas, ainda que muitos
estejam participando dos ternos. A valorização e o apoio asseguram a manutenção
da tradição. Durante cinco dias a cidade se mobiliza pelo centro, levantando
mastros, rezando à luz de velas, ao som da percussão dos catopês, e das cordas
dos marujos e caboclinhos.
O batuque dos catopês
impregna a alma, o coração muda de compasso, retumba ao sabor das caixas,
tambores e pandeiros e leva os montes-clarenses à infância. Só consegue saber o
que é ser catopê, quem esperou 15 de agosto, dia de Nossa Senhora do Rosário.
As mulheres foram aceitas aos poucos, pois até recentemente, só homens
participavam. O terno de João Faria não tem mulheres, mas João Pimenta dos
Santos, o Mestre Zanza, com seu boné azul, disse que as mulheres estão
brilhando em todos os lugares, e por que não também entre os catopês? Zanza foi
imortalizado na música “Montes Claros, montesclareou”, símbolo da cidade,
composta por Tino Gomes e Georgino Júnior. Numa entrevista “Mestre Zanza que é
cantador” disse que nasceu morrendo há 82 anos, quando sua mãe o consagrou a
Nossa Senhora do Rosário e, caso escapasse, seria catopê. E ele cumpre sua sina
desde os quatro.
Zé Expedito é o mestre
do Terno de São Benedito e Tone Cachoeira é o Mestre da Marujada. Ainda que os
catopês sejam os mais fotogênicos da festa, enchendo os olhos com seus trajes
brancos, suas fitas multicoloridas, partindo de capacetes bordados tendo ao
topo penas de pavão (não é cocar), os caboclinhos, em sua maioria crianças, com
suas saias de penas e seus arcos e flechas têm o seu encanto, e são comandados
por uma mulher, a Cacicona Socorro, Maria do Socorro Pereira.
Exige-se paixão e
resistência férrea, dos meninos aos idosos, para participar de dia e de noite
das rezas e cantorias debaixo do sol e dos ventos. Os símbolos sagrados são
invadidos pelas câmeras profanas. Os dançantes, como são chamados em conjunto,
foram aceitando ajudas, incorporando novidades, adaptando-se às mudanças em
seus estilos, e estas chegaram para ficar.
“A marujada vem
descendo a rua, suores brilham nos rostos molhados, agosto chega como a
ventania, cálice bento e abençoado, a dor do povo de São Benedito, no mastro
existe para ser louvada”. Uns de azul, outros de vermelho e ainda outros de
branco, os marujos cantam cantigas que todos sabem de cor. Fizeram hoje na
concentração em frente ao Automóvel Clube, uma evolução espetacular de giros e
rodopios, de vai e vem frenético, tão boa que causou vibração na platéia. A
performance se caracterizou por ritmo, agilidade e cronometragem, numa espécie
de desafio.
O Mestre João Faria,
do Terno de Nossa Senhora do Rosário, cujo batuque é o que mais me contagia
pela autenticidade, é só emoção. Quando o meu tio-avô Indalício Narciso morreu
no dia 15 de agosto, o mestre, que foi criado em sua fazenda, invadiu a sala do
velório com seu terno. Ainda que portassem suas alegres fitas coloridas,
ostentavam na manga uma fita preta. Segurando o choro, Mestre João Faria e seu
terno, tocaram, cantaram e dançaram em volta do caixão, rodando, indo e vindo
em torno do padrinho morto. Lágrimas e suor tomaram conta do lugar,
misturando-se às flores e às velas. Mas não fiquem tristes. Ano que vem tem
mais. Atrás dos catopês só não vai quem já morreu.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
As fotos estão marcadas como João Fonseca. O autor se chama João Marques Fonseca.
ResponderExcluirSua minuciosa descrição me lembra a Festa do Divino, em São João da Boa Vista. Não assisti a nenhuma, mas lá estive graças às vivas descrições de minha mãe. Abraços, Mara.
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