sábado, 15 de agosto de 2015

Aventuras de um economista brasileiro


* Por Celso Furtado


"O Nordeste brasileiro, onde nasci e vivi até aos vinte anos, constitui o mais antigo núcleo de povoamento do Brasil. Após uma fase de prosperidade nos séculos XVI e XVII, a região conhece um longo declínio, o que explica que as estruturas sociais aí sejam mais rígidas que em qualquer outra área do país. A descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais lhe retirou a preeminência econômica, e a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro significou a perda da preeminência política. Na minha infância, no sertão, a política absorvia parte importante da vida dos chefes de grandes famílias: consistia essencialmente em rivalidades e conflitos, com apelo corrente à violência, entre famílias e grupos de famílias locais. As incursões de cangaceiros eram freqüentes. Histórias de violências povoaram a minha infância. Referiam-se mais a atos de arbitrariedade, prepotência e crueldade que a gestos de heroísmo à western.

Nesse mundo marcado pela incerteza e pela brutalidade, a forma mais corrente de afirmação consistia em escapar para o sobrenatural. Os grandes milagreiros existiam como legenda, mas também como presença. Não longe de onde morávamos, reinava o Padre Cícero. Quando eu tinha oito anos, surgiu um chefe político no estado, que convulsionou profundamente a vida de toda a comunidade: João Pessoa que, no espírito da população, fundia as imagens do chefe e do milagreiro. Eu ouvia crédulo, das domésticas de minha casa, as histórias desse homem que se disfarçava "numa pessoa qualquer" para praticar o bem nos bairros mais humildes. O assassínio brutal desse homem (exatamente no dia em que eu completava os meus dez anos) provocou uma tal angústia coletiva que ainda hoje não posso me recordar sem me emocionar.

Esses dados quiçá possam explicar a formação em meu espírito de certas idéias-força que considero como invariantes, das quais dificilmente poderia libertar-me sem correr o risco de desestruturar minha própria personalidade. A primeira é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva. (...) Das influências intelectuais que sobre mim se exerceram desde o ginásio, identifico três. Em primeiro lugar, a positivista, com a primazia da razão, a idéia de que todo conhecimento em sua forma superior se apresenta como conhecimento científico. Meu ateísmo, que cristalizara desde os 13 anos, encontrou aí uma fonte de justificação e um motivo de orgulho. A segunda linha de influência vem de Marx, como subproduto de meu interesse pela História. Foi lendo a História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, que me dei conta pela primeira vez de que a busca de um sentido para a história era uma atividade intelectual perfeitamente válida. A terceira linha de influência é a da sociologia norte-americana, em particular da teoria antropológica da cultura, com a qual tomei contato pela primeira vez, aos 17 anos, lendo Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. (...)

O desejo de vincular a atividade intelectual criadora à história será o ponto de partida de meu interesse pelas ciências sociais. Fixou-se no meu espírito a idéia de que o homem pode atuar racionalmente sobre a História. Cheguei ao estudo da economia por dois caminhos distintos: a história e a organização. Os dois enfoques levavam a uma visão global, a macroeconômica. Dessa forma, a economia não chegaria a ser para mim mais que um instrumental. Nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico. (...)

Minhas atividades de economista se desdobraram em três fases. A primeira compreende os anos que passei na CEPAL, que me permitiram um contato direto com os problemas do desenvolvimento na maior parte dos países latino-americanos. A segunda são os anos que dediquei ao Nordeste brasileiro, como planejador e executor da política de desenvolvimento da região nos governos de Kubitschek, Quadros e Goulart. A terceira são os anos de vida universitária, primeiro nos Estados Unidos, e em seguida, e mais prolongadamente, em Paris. Essas atividades, no que respeita à pesquisa, se desenvolveram em torno de três temas: o fenômeno da expansão da economia capitalista, o da especificidade do subdesenvolvimento e o da formação histórica do Brasil vista do ângulo econômico. O esforço para compreender o atraso brasileiro levou-me a pensar na especificidade do subdesenvolvimento. Convenci-me desde então de que o subdesenvolvimento é a resultante de um processo de dependência, e que para compreender esse fenômeno era necessário estudar a estrutura do sistema global: identificar as invariâncias no quadro de sua história. O desejo de compreender o meu próprio país absorveu a parte principal de minhas energias intelectuais no quarto de século transcorrido desde que escrevi a minha tese sobre a economia colonial brasileira. (...)

As circunstâncias que modificaram o curso de minha vida em 1964 somente em parte são responsáveis pela decisão que tomei de dedicar-me inteiramente à vida acadêmica. A participação indireta e direta que durante quinze anos tive na formulação de políticas convenceu-me de que nossa debilidade maior está na pobreza de formulações teóricas e de idéias operacionais. A esse vazio se deve que a atividade política tenda a organizar-se em torno de esquemas importados os mais disparatados. A linha de menor resistência do mimetismo ideológico tende a prevalecer. (...)

Se tivesse de, em poucas linhas, traçar o retrato típico do intelectual nos nossos países subdesenvolvidos, diria que ele reúne em si noventa por cento de malabarista e dez por cento de santo. Assim, a probabilidade de que se corrompa, quando já não nasce sem caráter, é de nove em dez. Se escapa à regra, será implacavelmente perseguido e, por isso mesmo, uma viravolta inesperada dos acontecimentos poderá transformá-lo em herói nacional. Se persiste em não corromper-se, daí para a fogueira a distância é infinitesimal. De resto, por maior que seja a sua arrogância, nunca entenderá o que lhe terá ocorrido."

"Aventuras de um economista brasileiro" (1972), em International Social Sciences Journal, vol. XXX, nº 1-2, 1973, Paris.


* Economista, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e um dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX.

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