Personagem com o selo da verossimilhança
O escritor sagaz – e claro, talentoso e preparado e não mero
“aprendiz de feiticeiro” – não raro recorre à experiência pessoal, a fatos que
realmente ocorreram em sua vida, para brindar os leitores com magníficas
obras-primas que, com o tempo, tornam-se, até, clássicos da Literatura. Se não
quiser reproduzir literalmente tais acontecimentos, nem os respectivos
protagonistas (o que pode fazê-lo, se preferir), basta recorrer à fantasia, sem
carregar nas tintas. Pode mudar a descrição dos personagens, por exemplo, para
que os verdadeiros não se identifiquem neles, alterar desfechos, mudar
cenários, mexer na cronologia, enfim, descaracterizar o que aconteceu, e viveu,
sem que com isso a história se torne menos interessante, ou desinteressante. Em
geral, ocorre o contrário. O escritor talentoso faz dessa experiência pessoal
algo não somente de supremo interesse para terceiros, como inesquecível, dada a
semelhança com a realidade. Muitos grandes romances nascem dessa forma.
Um dos livros, com as características que citei, que mais
aprecio, é “Adeus às armas”, de Ernest Hemmingway, publicado em 1929 (foi a
terceira obra de ficção do escritor), cujo título foi inspirado em um poema do
poeta inglês do século XVI, George Peele. Entre as edições lançadas entre nós,
destaco a da Bertrand Brasil, realmente primorosa. Embora o enredo tenha como
pano de fundo a Primeira Guerra Mundial, encaro o romance como primorosa e
pungente história de amor. Ernest Hemmingway sempre foi tido, e havido (com
razão), como escritor “machista”, não muito dado a sentimentos, considerado, sobretudo,
como homem de ação. Afinal, fez safáris na África, participou da Guerra Civil
Espanhola, foi espião em Cuba e correspondente na Europa durante a Segunda
Guerra Mundial etc.etc.etc. E transportou todas essas aventuras que viveu para
seus personagens.
Pois foi justamente esse homem rude, que valorizava tanto o heroísmo,
os atos de bravura, os riscos e a ação que nos legou uma das mais belas
histórias de amor do século XX, talvez, até, de todos os tempos. E dela emerge
uma das personagens femininas realmente inesquecíveis da ficção. Refiro-me à
enfermeira Catherine Barkley, grande paixão do oficial norte-americano Frederic
Henry, que se alistara como voluntário no Exército italiano. Ferido na perna
quando tentava socorrer um soldado na batalha, vai parar num hospital militar,
onde então encontra o grande amor de sua vida. O casal se apaixona, vive belo
affaire amoroso, mas... Não tem o tão esperado “happy end” que o leitor tanto
espera. Catherine morre ao dar a luz ao filho dos dois.
É aí que entra o fator que citei acima, ou seja, o da
experiência pessoal como estrutura, esqueleto, arcabouço de um grande romance. Com
exceção dos nomes e do desfecho, a história que Hemingway viveu, ainda mal
saído da adolescência, é praticamente a mesma de “Adeus às armas”. Aventureiro
como era, no vigor da juventude, aos 19 anos de idade, tenta se alistar no
exército do seu país. É recusado. Não desiste, todavia. Larga o emprego como
repórter no jornal “Kansas City Star” (era jornalista precoce, mas aplicado e
observador) para tornar-se motorista de ambulância no front italiano como
voluntário da Cruz Vermelha (a exemplo de seu personagem, Frederic Henry).
Sua paixão, na vida real, foi, também, uma enfermeira: Agnes
von Kurowsky. A exemplo de Catherine, ela tratou dos ferimentos que o escritor
recebeu em campo de batalha. Na história verdadeira, sua “musa”, por razões
nunca explicadas, não aceitou casar-se com ele. Provavelmente, o motivo foi sua
juventude e as incertezas naturais de tempos de guerra. Vá se saber! Em “Adeus
às armas” (no livro), Catherine morreu. Na versão cinematográfica do romance,
porém, há um final feliz. Não sei se esse desfecho agradou o escritor. Presumo
que não. No início de 1919, Ernest Hemingway volta para Oak Park, no Illinois,
sua cidade natal. A imprensa local recebe-o como um herói. Isso a despeito de ter
permanecido, somente, um único mês como motorista de ambulância da Cruz
Vermelha. Um dos jornais de Oak Park chegou mesmo a estampar esta manchete: “Herói de 19 anos
volta para casa com 227 ferimentos e procura emprego”.
Em janeiro de 1929, dez anos e um dia depois de seu retorno
à terra natal, o escritor finalmente conclui “Adeus às Armas”. Suas emoções
podem ser resumidas nesta fala do personagem Frederic Henry:“Quando se vai para
a guerra, sente-se uma grande sensação
de imortalidade. Os outros podem morrer, não você… Então, quando você é ferido pela primeira
vez, todas as ilusões desaparecem e você sabe as coisas horríveis que podem
acontecer contigo”. Para os críticos, “Adeus às armas” está longe de ser o
melhor livro de Hemmingway. O que o consagrou de vez foi “O velho e o mar”, que
lhe valeu o Prêmio Pulitzer de 1953 e certamente contribuiu decisivamente para,
um ano depois, em 1954, fosse consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Embora eu tenha falado pouco de Catherine Barkley, ela é, e
sempre foi, para mim, personagem feminina inesquecível. É verdade que talvez o
fato de eu ter lido “Adeus às armas” no início da adolescência, em 1957, quando
mal completara os catorze anos, tenha me influenciado para considerá-la assim.
E você, paciente leitor (caso tenha lido o romance, claro) o que acha da
protagonista? Mesmo os que não gostam de Hemmingway têm que admitir, no
entanto, que se trata de uma história bonita e singela, escrita em um estilo
ágil, de parágrafos curtos, de leitura fácil e agradável e que, sobretudo, tem
o mérito, tem o “selo” da verossimilhança, por ser baseada, óbvio, em
acontecimentos reais.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Desse autor li apenas "O Velho e o mar". Os 14 anos nos faz sensíveis a determinados personagens. Nessa idade li "Clarissa", de Érico Veríssimo, a qual nunca me esqueci. Lembro-lhe até das falas.
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