Meus
pescadores anônimos
* Por Harry
Wiese
Gosto
de caminhar pela praia antes do Sol nascer. É mais prazeroso. O ar está limpo e
oxigenado e a maresia insculpe seu cheiro no corpo da gente. As gaivotas ainda
dominam a areia e não têm medo de mim. Conseguem voar e aterrissar à moda de
penugem em movimento. Só se ouve seu pipilar se misturando ao murmúrio do mar.
Ao longe vejo pescadores. São artesanais, anônimos. Estão puxando a rede. Logo
estarei perto deles. A distância se encurta a cada passo. Nos tempos idos, eu
via vários grupos em ação, com peixes em abundância e sorrisos de duração de
dia inteiro. Hoje estão rareando, vejo somente um único aglomerado.
O
silêncio é o reflexo da solidão exposta. Puxam a rede devagar. Puxam, puxam,
puxam... São cinco homens fortes em cada lado. A cerimônia se desenrola entre a
tradição, que ainda perdura e a necessidade da sobrevivência: mulher e filhos.
Pescadores
e peixes tornaram-se raros. Mesmo assim, ainda estão lá e sempre há curiosos
olhando. Enquanto homens pescam e curiosos olham, a tradição não se extingue.
Enfim,
eles puxam a rede com um enorme cinturão, que está junto ao corpo. Andam para
trás. O último solta a corda e toma o lugar do primeiro e puxa novamente. É um
vaivém cadenciado à moda de certo Nazareno, que um dia pronunciou a sabedoria
que lhe era peculiar: “muitos primeiros
serão últimos, e muitos últimos serão primeiros". Ele, o Senhor, entendia
de peixes. Com dois deles somente, alimentou uma multidão inteira e aos
pescadores cansados de nada pescar, orientou: não é ali que deveis lançar as
redes, é mais para o lado. E o resultado foi aquele que todos conhecem.
Ali, na beira da praia, a pescaria se aproximava do
fim. Parecia colheita farta. Fartura anunciada, fartura ilusória. Entre peixes,
caranguejos, arraias, que decepção, há latas de cerveja, garrafas e copos
plásticos, vidros e uma tartaruga morta em alto estado de decomposição.
Na areia, os peixes foram recolhidos em grandes
cestos, as arraias devolvidas ao mar e o lixo foi levado pelo caminhão da
Prefeitura. Aos poucos, o Sol espalhou sua luz em tudo, nas montanhas, nos
prédios e uma multidão foi tomando a areia da praia. Guarda-sóis contrastaram
com a azul do mar e um transatlântico de luxo apareceu na linha do horizonte.
Seu destino é Porto Belo.
Aos poucos, os pescadores dispersaram-se; antes,
porém, libertaram a rede dos resquícios de algas e restos de poluição e
guardaram-na na canoa. O processo de limpeza é de técnica perfeita. O que me
consola é saber que na mesa dos pescadores haverá peixe no almoço e no jantar.
Amanhã, antes de o Sol nascer, se Deus quiser,
voltarei a caminhar pela praia e se sorte tiver, encontrarei os pescadores
puxando sua rede de sonhos. Sei que mesmo com poluição e míngua de peixes, a
tradição de tantas gerações estará garantida. Que o Pescador das gentes os acompanhe e derrame suas bênçãos sobre eles e
sobre os peixes!
* Harry Wiese é escritor que reside em
Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance
premiado pela Academia Catarinense de Letras.
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