Entre a caneta e a borduna
* Por
José Ribamar Bessa Freire
- Ele não assina nem
que a vaca tussa - disse a primeira.
- Só assina se for
pressionado - falou a segunda.
Sei que as duas falam
pelos cotovelos, mas nunca tive a sorte de conversar com elas. Quando a
primeira, que é conciliadora, sofre uma derrota, cede o lugar para a segunda,
que não rejeita briga. Foi o historiador Neimar Machado de Sousa, professor da
Universidade Federal da Grande Dourados, que encontrou as duas numa sala do
sexto andar do Ministério da Educação em Brasília e, finalmente, conseguiu,
entrevistá-las.
Neimar pode formular
perguntas. Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e mestre
em história regional do Mato Grosso do Sul, ele é "rato de arquivo".
Andou xeretando documentação do SPI - Serviço de Proteção aos Índios em projeto
com o Museu do Índio para catalogar, divulgar e colocar a documentação
acessível aos índios e aos pesquisadores. Andou pelos arquivos do Paraguai e
participou da criação do Centro de Referência Virtual da Memória e do
Patrimônio Cultural Guarani e Kaiowá.
A documentação
encontrada nos arquivos dá conta da presença dos índios na região, da invasão
dos seus territórios e do conflito pela terra, além da participação deles, já
despossuídos do seu chão, nos empreendimentos locais como a exploração da
erva-mate e a formação de pastagens em fazendas. O historiador publicou livros
e artigos sobre a catequese jesuítica e sobre a construção colonial da fome
entre os Guarani. Por isso, talvez seja a pessoa mais indicada para realizar as
entrevistas que fez, num momento em que se acirra o conflito agrário entre
índios e fazendeiros.
Os conflitos
A origem do conflito
reside basicamente no fato de que em passado recente os índios foram expulsos
de suas terras, algumas delas vendidas pelo próprio Estado, que agora propõe,
através do Ministério da Justiça, indenizar os fazendeiros para que se retirem
do território indígena. Os fazendeiros, que estavam negociando a saída, mudaram
de ideia diante da possibilidade do Congresso Nacional aprovar a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC 215) que favorece seus interesses.
Foi nesse contexto que
Neimar Machado de Sousa realizou as entrevistas, cujo texto intitulado A CANETA
E A BORDUNA reproduzo aqui, aproveitando também para piratear a foto.
"Representantes
indígenas de vários estados juntaram-se a uma delegação de professores e
caciques das etnias Guarani, Kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul e partiram
para Brasília, onde durante dois dias visitaram alguns órgãos do governo
federal. Uma pergunta que se fizeram várias vezes foi: o que nos trouxe aqui?
Durante dois dias acompanhei,
como observador, esse grupo e procurei ler-escutar os seus textos-falas para
encontrar uma resposta. Ouvi muitas explicações. Uma delas foi escrita pelo
cacique Jorge Gomes, da aldeia Pirakuá, em frente á Advocacia Geral da União:
- Nossos direitos não
tem partido - conclamou os aliados do alto de sua sabedoria. Outra resposta foi
verbalizada pelo índio Cretã Kaingang, do Paraná:
- Meu pai foi morto,
lutando pelas terras usurpadas, sem nenhuma providência, por mais de sessenta
anos. Eu era apenas um garoto de oito anos de idade". Já a professora
Teodora de Souza explicou a Paulo Gabriel Nacif (SECADI-MEC) e ao representante
da Secretaria Geral da Presidência da República o que entendia por pátria
educadora:
- Uma nação que todos, independentes de sua
etnia, tenham acesso justo, gratuito, aos bens culturais. Uma nação em que os
saberes não sejam privilégios de uma pequena elite.
De todas as respostas,
a mais contundente foi escrita em uma fotografia, em cuja legenda eu
escreveria: a caneta e a borduna. O professor, flagrado pelo fotógrafo,
coordena uma licenciatura indígena na cidade de Aquidauana - MS e a borduna, à
sua frente, pertence ao cacique Jorge Gomes, da etnia kaiowá. Intrigou-me como
os dois objetos foram se encontrar no sexto andar do Ministério Educação, em
Brasília – DF. Fui entrevistar os objetos em segredo.
A borduna, um pouco
ríspida, contou-me muitas aventuras contra inimigos ferozes de outras tribos,
abatidos em guerras imemoriais. Falou sobre sua participação na vingança dos
parentes devorados por felinos-homens, predadores de índios, chamados pelos
Guarani de ava poro’ú. Os cronistas coloniais Hans Staden, Jean de Léry e o
sociólogo Florestan Fernandes ajudaram-me na investigação.
Entrevistar a caneta
foi bem mais fácil, pois ela foi bastante eloquente. Contou-me que tem andado
em muitos gabinetes de Brasília. Em alguns mais ausentes. Portas fechadas. Nas
aldeias, disse-me, aprendemos, nos últimos anos a escrever palavras nas línguas
maternas dos povos indígenas;. Falou-me que ajudou muitos
professores-pesquisadores a registrar histórias de anciãos que não conseguem
esquecer traumas pelas remoções de aldeias inteiras, quando eram também
garotos, contra a própria vontade, em caminhões de transportar gado, sob a mira
cuidadosa de “seguranças” armados e impedidos por anos de retornar ao local
onde foi enterrado seu ponchito kuê, o cordão umbilical.
Já no final da
entrevista, o sábio objeto, bem mais à vontade, confidenciou-me que sua maior
frustração na vida foi não conseguir colaborar, não por falta de vontade, mas
por omissão de algumas autoridades, a rabiscar seu maior sonho: a assinatura da
homologação das terras indígenas, que, segunda ela, está escondida numa gaveta
do Ministro da Justiça, em Brasília. Diante de tantos relatos, compreendi o que
trouxe estes professores e líderes indígenas à Brasília. Vieram ensinar ao
governo que a pátria educadora é a irmã gêmea da pátria de direitos. Uma não
vive sem a outra".
*
Jornalista e historiador
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