Do leitor
* Por
Augusto Meyer
Ler um livro é
desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo para viver noutro mundo.
A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o
sumidouro da vida subjetiva. Árvores ramalham. De vez em quando passam passos.
Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem,
prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado a este mundo pela
fatalidade vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra
dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois
passageiros: Leitor e autor.
Os rumores do momento
não conseguem despertar o sonâmbulo encantado, a caminhar sem vacilações sobre
o fio invisível da fantasia. Descobriu, pela mão do autor, outro mundo,
sublimado e depurado, e dentro dele alguém gritou: terra! terra! Volveu a si
mesmo.1
O leitor ingênuo é
simplesmente ator. Quero dizer que, num folhetim ou num romance policial,
procura o reflexo dos seus sentimentos imediatos, identificando-se logo com o
protagonista ou herói do romance. Isto, aliás, se dá mais ou menos com qualquer
leitor, diante de qualquer livro; de modo geral, nós nos lemos através dos
livros.
Mas no leitor ingênuo,
essa lei dos reflexos toma a forma de um desinteresse pelo livro como obra de
arte. Pouco importa a impressão literária, o sabor do estilo, a voz do autor.
Quer divertir-se, esquecer as pequenas misérias da vida, vivendo outras vidas
desencadeadas pelo bovarismo da leitura. E tem razão. Há dentro dele uma
floração de virtualidades recalcadas que, não encontrando desimpedido o caminho
estreito da ação, tentam fugir pela estrada larga do sonho. No fundo, o João
mais resignado pensa como os seus demônios: ou César, ou nada!
A leitura, nesse caso,
será um anestésico dos complexos de humilhação e parece dizer, como o nosso
poeta.:
Vou-me embora pra
Pasárgada
Aqui eu não sou
feliz.2
No leitor ingênuo, é
mais acentuada a dissociação entre realidade e fantasia. O mundo presente,
complexo de sensações importunas, mal consegue romper o círculo da sua
concentração. A posição incômoda na cadeira, o peso do livro, todos os tropeços
que estorvam a abstração da leitura, não sacodem o distraído nem despertam o
dorminhoco. Está roncando o seu lindo sonho
O tipo representativo
do leitor ingênuo é o devorador de romances que salta capítulos inteiros para
chegar ao fim e saber de uma vez qual foi o prêmio do herói, se o moço casou com
a moça e o dedo de Deus castigou o mau. De tal modo se identificou com o herói,
passando a viver da sua existência sublime, que deseja saber o seu destino como
quem quer desvendar o próprio futuro. Ele, simples João, é o conde de
Monte-Cristo. Agigantado, corre nas suas veias outro sangue, mais generoso.
Enquadra na grande aventura as suas desventuras. Os olhos ávidos, arrastados
linha a linha, página a página, pelo galope da fantasia, estão dizendo: esta é
a verdadeira vida, a outra não passa de um pesadelo. Inconscientemente, repete
o gesto simbólico de Rubião em Quincas Borba - com uma coroa de brisa, ele
próprio se coroa rei.
A imaginação, velha
dueña experiente que protege os amores da vida e do sonho, não é aquela
"folle du logis" proverbial. Bem sabe que tudo depende do contrato
entre o cinismo e a esperança. Vende ilusões. Cobra caro, às vezes, mas quem
poderá pagar uma ilusão? Quando Alonso Quijano deixou de ler os livros de
cavalaria andante, amargou saudades de si mesmo.
E aí está o exemplo
clássico da identificação do leitor com a personagem fictícia. Alonso Quijano
enganchou-se à garupa dos cavaleiros andantes e tentou viver as suas leituras.
Aos quinze anos, quem já não foi mosqueteiro de Dumas, perdendo, porém, o
penacho aos primeiros desmentidos da realidade?
Relendo, por volta dos
quarenta, os romances devorados na adolescência, quando o mundo é enorme e
parece inesgotável a disponibilidade da fantasia, compreendemos a importância
da educação sentimental contida nos livros de ficção.
O que predominava no
leitor monstruoso que já fomos um dia, era a delícia de criar, acima da
realidade, um ambiente de refúgio, onde tudo palpitava de uma vida mais
intensa. A larva dos desejos, dos incertos e impuros desejos, vestia as asas do
sonho, e abrir o livro era liquidar os cuidados importunos, cortando qualquer
nó de um só golpe, ao simples virar das folhas.
Tudo isso repetido
vezes sem conta e criado o hábito da fuga, é claro que volvíamos a este mundo
estreito com uma vaga saudade do outro, onde não havia sabatinas complicadas
nem deveres urgentes para com a família.
É quase sempre no
ginásio, aliás, que a sedução dos primeiros romances começa a exercer seu
império sobre o adolescente. A monotonia mesmo da rotina escolar serve nesse
caso de contraste oportuno; de súbito, no meio da análise lógica, a
"Prece" do Guarani, ou qualquer página de grande escritor, destinada
a agitar a imaginação entorpecida, cai sobre o incauto como um doce raio de
luz, provoca a fermentação dos devaneios, e o livro cartonado e sujo, que
parecia a bíblia do tédio, abre-se em perspectivas de mistério e delícia.
Começa uma vida nova para o leitor que desabrochou agora mesmo no estudante
bisonho.
Gula das leituras
intermináveis, noite adentro, acompanhando a sorte dos heróis com verdadeira
angústia, enquanto os aborrecimentos rondavam a concentração do visionário, sem
licença de entrar. Era uma ebrieza como a outra e deixava, ao passar, um gosto
melancólico de cabo de guarda-chuva - a nostalgia de um paraíso perdido.
Ainda hoje as edições
Garnier de capa vermelha me perturbam como velhas fraquezas mal recalcadas. Não
dizer a ninguém, rumino comigo, quanto sonho está enterrado naquelas relíquias,
nem o mal que me fizeram aos quinze anos.
É em vão, por exemplo,
que Alencar se reveste de outra roupagem e ressurge sob a cor da folha morta
nesta edição Melhoramentos por sinal bastante melhorada, como feitura gráfica e
revisão do texto. Quando abro o volume, tenho a impressão de retomar o mesmo
volume antigo, e apesar da brochura e da cor, parece que é a mesma capa
encarnada que estou sentindo entre as mãos.
Mas o leitor mudou.
Apalpa desconfiado o miolo do livro, talvez com medo de não encontrar mais a
ilusão de outros tempos, quando passava horas no ópio literário e vivia,
estirado na cama, as aventuras de Arnaldo Loredo, o sertanejo, ou do altivo
Estácio das Minas de prata. Parafraseando o provérbio alemão, ninguém passa
impunentemente à sombra das palmeiras de Alencar.
[...]
Às vezes, tão intenso
era o prestígio da ficção, que, entre uma cena comovente apenas imaginada ou
lida e o espetáculo real das misérias humanas, a lágrima não hesitava: escolhia
os olhos do leitor. Parece que a feiúra da realidade, com seus dramas em carne
e osso, a estancava logo, por não sei que absurdo mistério da contradição. No
fundo, a piedade hipócrita de um lascivo amador de sensações.
What’s
Hecuba to him or he to Hecuba
That
he should weep for her?
Eu pergunto e passo:
constato apenas o prestígio dos fantasmas e um dos extremos de aberração a que
pode chegar o leitor, espécie de ator potencial, sob a influência do espírito
romanesco.
Assim éramos nós
então, por não sabermos ler nas entrelinhas. E daquela primeira fase de
educação sentimental, que parecia inevitável como as espinhas, passava quase
sempre o jovem monstro para uma crise de hipercrítica. Devido à necessidade de
um restabelecimento de equilíbrio, o excesso engendrava o excesso contrário. A
pouco e pouco os românticos perdiam terreno em proveito dos naturalistas.
Dava-se uma verdadeira subversão de valores na escala da sensibilidade e a
fantasia comprazia-se em derrubar os antigos ídolos. Formava-se muitas vezes,
coincidindo com manifestações mórbidas que são do domínio da psicanálise, um
pedantismo da clarividência, tão nocivo como a intemperança imaginosa ou
sentimental, e talvez mais ingênuo, pois refletia um ressentimento de namorado
ainda ferido nas suas primeiras ilusões.
Proust escreveu
páginas admiráveis sobre o encanto da leitura, ao prefaciar a sua tradução de
Sesame and Lilies, V. John Ruskin, Sésame et les Lys, traduction, notes et
préface par Marcel Proust, quatrième ed. Paris, Mercure de France, 1906.
Manuel Bandeira,
Libertinagem, 1930.
(À sombra da estante,
1947.)
*
Escritor e jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras.
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