Uma vilã inesquecível
O escritor russo, Fiodor Dostoievsky, é uma das figuras mais
pitorescas, trágicas e humanas não somente da Literatura mundial, mas também
como indivíduo. O mínimo que se pode dizer sobre seus livros é que eles são,
todos, “intensos”. São carregados de paixão em seus extremos, tanto para o bem
quanto para o mal, tanto de amor quanto de ódio. Creio ser desnecessária uma
apresentação formal mais extensa dele, porquanto muito já se escreveu a seu
respeito e sobre sua obra, pontilhada de tragédias (como, ademais, trágica foi
sua vida). Entre seus romances mais comentados (e mais apreciados) está “O
idiota”, que ele escreveu em Florença, em uma de suas tantas viagens pela
Europa, para escapar do implacável assédio de credores. Dostoievsky vivia
sempre endividado, com a corda no pescoço, nas mãos de agiotas, por causa do
seu vício de jogo. Era um perdedor nato. Deixou fortunas em vários cassinos
europeus, notadamente de Monte Carlo. Escrevi muito a seu respeito e considero,
portanto, redundante voltar a tratar de sua mirabolante biografia.
É do romance “O idiota” que emerge a terceira mulher citada
na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site
“Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com).
E esta é Nastássia Filippovna. É a escolha do poeta Márcio Ahimsa, autor do
livro “Lobisomem pós-moderno” (em co-autoria com Adenildo Lima). Volto a lembrar – e o farei quantas vezes
julgar necessário – que a pesquisa do site reúne catorze especialistas em
Literatura, todos leitores compulsivos, que têm que escolher apenas uma única
personagem feminina que considere inesquecível. E deve justificar sua opção.
Este, no entanto, é um caso atípico. A personagem feminina
inesquecível não é nenhuma heroína do romance. Pelo contrário, é a vilã. Para
situar o leitor no enredo, caso não tenha lido o romance, informo que a trama
começa quando o principal protagonista da história, o príncipe Míchkin, de 27
anos de idade, retorna a São Petesburgo, após permanecer vários anos em um
sanatório na Suíça para tratar de epilepsia. Recorde-se que Dostoievsky também
era epiléptico. Portanto, conhecia, como poucos, os efeitos dessa doença. O
tema central da trama é a problemática do indivíduo puro, superior, que por
essas características (que evidentemente são positivas), é, frequentemente, rotulado
pela imensa maioria, numa sociedade corrompida, como idiota. Ou seja, como um
sujeito, no mínimo, inadaptado.
O humanista e epilético Míchkin, observe-se, é apresentado
por Dostoievski como uma espécie de mescla de Jesus Cristo e de Dom Quixote.
Sua ilimitada compaixão choca-se brutalmente, tanto com o desregramento mundano
de Rogójin, a princípio seu amigo e, na sequência, grande rival, quanto com a
beleza enlouquecedora de Nastássia Filíppovna. E ela é a figura inesquecível (e
não só para Márcio Ahimsa, mas também para o leitor atento e sensível). Mas não
por suas supostas virtudes, mas exatamente pelo contrário. Ela é o que se pode
classificar sem sustos de “anti-heroína”. Ou, mais especificamente, de vilã.
A bondade e o impacto da sinceridade do príncipe revelam, de
maneira explícita (e trágica) como em um mundo obcecado por dinheiro, poder e
conquistas, o sanatório acaba sendo o único lugar apropriado para um santo.
Conclui-se que loucos não são, propriamente, os que são diagnosticados como
tais, mas sim os que consideram normal esse comportamento corriqueiro e
generalizado da insensata competição por fortuna, fama e poder, a obsessão de “levar
vantagem em tudo” que se tem, mas que se nega enfaticamente. O “bom” tornou-se
sinônimo de “bobo”. É mais ou menos a mesma mensagem que Machado de Assis
deixou implícita em “O alienista”.
Nastássia corrompe-se à medida que o tempo passa. Quando
moça, era pessoa culta, gentil, de boas maneiras e excelente índole, com rara
presença de espírito. Todavia, muda radicalmente seu modo de comportar-se à
medida que os anos passam. Corrompe-se. Torna-se maldosa e dissimulada. O bondoso
e ingênuo príncipe Míchkin, todavia, apaixona-se perdidamente, por ela, tão
logo a vê pela primeira vez, na casa dos Epantchin. Em virtude da morte trágica
dos pais, Nastássia foi, ainda menina, acolhida por Tótski, juntamente com a
irmã, que viria a falecer pouco tempo depois. Assim, a bela garota seria
entregue a vários cuidados diferentes ao longo da juventude. Concluída sua
educação, tornou-se mulher consciente de sua beleza e do efeito que ela causava
sobre os homens.
Não tardou a descobrir o grande poder de sedução que tinha e
não relutou em lançar mão dele quando surgiu oportunidade para tal. Ambicionava
casar-se com Totski, que lhe daria uma vida de luxo e riqueza, supunha, porém se
frustrou. A partir do momento que soube do pretenso casamento do homem com quem
pretendia se unir (com uma das Epantchin), tornou-se completamente diferente do
que fora na mocidade. Foi como se nascesse de novo, com nova índole. Encheu o
coração e a alma de ódio, de desejo de vingança, de falta de piedade com quem
quer que fosse e, acima de tudo, de implacável malvadeza.
Nastássia Filíppovna não tem o menor escrúpulo em semear
discórdia, separando o príncipe Michkin de seu grande amigo, Parfion Rogojin,
que por influência dela, se tornam grandes rivais. Insinuando-se ora para um,
ora para outro, ela faz com que ambos se tornem competidores em disputa do seu
amor. É, pois, a “vilã perfeita”: impiedosa, dissimulada, fascinante,
apaixonante até, porém destrutiva. Por tudo isso finda por ser inesquecível.
Mas... arrepiante. Márcio Ahimsi observa a seu respeito: “Nastássia Filíppovna
é, de certo modo, uma sombra de Maria Madalena, assim como o personagem
principal, príncipe Míchkin, o é de Jesus Cristo”. E por que o poeta a escolheu,
entre tantas personagens femininas da Literatura? “Pela trajetória de abandono,
pela veleidade de seus atos, pelo próprio desprezo que nutria pelos homens e
por si mesma”, concluiu. É o tipo de mulher inesquecível, sim, mas cujo bem
maior seria esquecê-la de vez. Mas... que não se esquece...
Boa leitura.
O Editor.
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Figura deveras interessante. Está na moda a escolha dos vilãos.
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