Livro perdido de Shakespeare
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Fala-se, amiúde, em “elo perdido” que,
na teoria da evolução de Charles Darwin seria aquele momento em que determinado
animal, recém-adaptado à vida fora do mar, teria iniciado prolongado processo
de mutação que iria redundar, milhões de anos depois, no homem. Se ele existe
ou não é outra história. Creio que todos pelo menos já ouviram falar nisso.
O raro, todavia, é alguém referir-se a
algum “livro perdido”. Pois isso, justamente, é, há pelo menos dois séculos e
meio, motivo de controvérsia entre críticos, historiadores e outros
especialistas em literatura, que se digladiam em torno da autoria de
determinada obra.
Para tornar a questão ainda mais
apimentada, a polêmica envolve não um escrevinhador qualquer, desses obscuros,
de província, mas um gênio. Aliás, é tão genial que, qualquer relação dos
melhores escritores de todos os tempos que não contiver seu nome já nascerá
morta. É considerado (com inteira justiça) o “poeta nacional” da Inglaterra e
os ingleses se referem a ele, carinhosamente, como “The Bard” (O Bardo). Você,
certamente, já matou a charada. Nosso personagem é ninguém menos do que William
Shakespeare.
Sim senhores. É ele mesmo. É esse
genial dramaturgo, que nos legou uma obra densa, profunda e copiosa. Só de
peças, das que se tem certeza que escreveu, são 37. Além disso, deixou-nos 154
sonetos, dois longos poemas narrativos e diversas outras poesias.
Sua obra é de estudo obrigatório em
todas as escolas de países de língua inglesa, nas aulas de Literatura. Da mesma
forma que no Brasil (e em Portugal), analisamos “Os Lusíadas”, de Luiz Vaz de
Camões (ou, pelo menos, era analisado nos meus tempos de estudante), os livros
de Shakespeare “são virados no avesso”,
na Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e vai por aí
afora.
Ainda assim, teme-se que boa parte da
sua obra tenha se perdido. Como é possível?! Não sei. Volta e meia, aparecem
novos livros, atribuídos a Shakespeare, a maioria grosseiras falsificações, que
não resistem a uma análise mais artificial. Suas principais peças seguem sendo
encenadas por companhias do mundo todo, amadoras ou profissionais, em
praticamente todas as semanas (e não acharia exagero se me dissessem que o são
todos os dias).
Quem não conhece, por exemplo, “Romeu e
Julieta”? Quem não leu a peça e não assistiu à sua representação no teatro,
deve ter visto sua versão cinematográfica. E se não viu, conhece, nem que for
por alto, o drama desses jovens apaixonados. Esses personagens são tão
conhecidos que há, até, uma sobremesa muito comum com o seu nome, envolvendo
queijo e marmelada (ou goiabada, ao gosto do freguês).
Muitos de nós, certamente, vivemos a
situação desse casal de apaixonados (posto que, felizmente, não com seu trágico
desfecho). Quantas pessoas já não se apaixonaram por alguma garota, de família
inimiga da sua? E Shakespeare tratou desse drama, tão comum, de forma
majestosa, poética, verossímil e bela.
Além de “Romeu e Julieta”, sua peça
mais conhecida, legou-nos preciosidades como “Hamlet” (tida pela maioria dos
críticos como sua obra-prima), “Sonho de uma noite de verão”, “A tragédia de
Júlio César”, “Rei Lear”, “Macbeth”, “Ricardo III”, “A megera domada”, “A
comédia dos erros”, “Henry V”, “Titus Andronicus” e vai por aí afora.
Como pode, pois, o autor dessas obras
tão geniais ter a autoria de algum livro contestada? Pois é, tem. Trata-se de
“Double falsehood”. É de Shakespeare? Não é de Shakespeare? O especialista na
obra desse gênio, Brean Hammond, acredita que pode, finalmente, pôr fim à
controvérsia. Trata-se de um dos maiores peritos em obras literárias antigas e
professor de Literatura da Universidade de Nottingham, na Inglaterra.
Sua conclusão, assegurando não só a
autenticidade do livro, mas sua autoria, foi divulgada em 16 de março de 2011,
em Londres, ao cabo de dez longos anos de análise. A matéria da Agência France
Press, que nos trouxe essa notícia, informa: “Em 1727, Lewis Theobald, editor
especializado em Shakespeare, assegurou que havia encontrado uma das três
cópias de uma obra perdida do dramaturgo, intitulada ‘Double falsehood or the
distrest lovers’. Os especialistas da época denunciaram a suposta falsidade
negando que Shakespeare tivesse algo a ver com essa obra. Mas, segundo Brean
Hammond, que se dedicou dez anos ao estudo de ‘Double falsehood’, não há
nenhuma dúvida que o texto leva a marca de Shakespeare”.
Trata-se, em resumo, de uma
tragicomédia que relata a rivalidade entre o malvado Henríquez e o bondoso
Julio pelas belas Violante e Leonora. Muitos podem estar se perguntando: como
teria acontecido o extravio dessa peça e por que ela não foi publicada na
época, quando Shakespeare era vivo? Afinal, ela veio a público, apenas, um
século depois da morte do dramaturgo.
As causas, convenhamos, podem ser
muitas. Só eu poderia citar, sem pensar muito, umas quatro ou cinco. Quem já
escreveu peça de teatro sabe que é muito fácil disso acontecer. Eu mesmo
escrevi uma, para ser representada na escola em que estudava, há coisa de cinquenta
anos.
Durante os ensaios, várias falas
tiveram que ser mudadas para facilitar a performance dos atores. O texto
sofreu, pois, inúmeras rasuras. Para eventualmente publicá-lo, teria de
passá-lo a limpo, pois na época eu não contava com a moleza que se tem hoje, do
computador, que facilita tudo, para todo o mundo. Tinha que reescrever o texto
na unha
Depois que a peça foi encenada, prometi
a mim mesmo consolidar, finalmente, a redação definitiva, aquela que os atores
encenaram . O tempo foi passando, o rascunho foi mudando de gaveta, e eu fui
mudando de casa, de cidade, de Estado até que... Lá um belo dia, quando me
dispus a, finalmente, passá-lo a limpo, cadê?! Não o encontrei nem com reza
brava. Felizmente, não sou nenhum Shakespeare. Portanto, não se perdeu nada que
valesse tanto, ou que sequer tivesse algum valor, não sei. Pode ser que dentro
de quarenta ou cinqüenta anos a tal peça reapareça por aí. Não pode ter
acontecido o mesmo com “The Bard”? Tenho convicção que sim.
Boa
leitura.
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Estranho, mas até possível. Seu caso já tinha sido ventilado por você aqui.
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