Sem concessões
* Por Pedro J.
Bondaczuk
A vida em comunidade – quer seja uma família, quer uma empresa, quer
um clube ou a própria sociedade – é caracterizada por concessões. Submetemo-nos
a regras – escritas ou não, oriundas da tradição ou criadas ao sabor das
necessidades, quando não dos caprichos de quem criou – do nascimento à morte.
A todo o instante, desde que tomamos
consciência de nós e do mundo, somos forçados a fazer o que não queremos, o que
não gostamos ou o que entendemos desnecessário ou inútil. Mas quando viemos
para este jogo, para este baile, para este imenso teatro surrealista, as normas
que os regulamentavam já estavam estatuídas, sem que fôssemos consultados.
Podemos, eventualmente, influenciar em
um ou outro dos seus aspectos secundários. Mesmo para isso, temos que contar
com um poder de convencimento bastante acima da média ou com qualquer outra
forma de pressão, lícita ou não. O jornalista, em certa medida, conta com isso.
Por essa razão, é mais temido (principalmente por quem tem culpa no cartório)
do que respeitado. Amado?! Esqueçam! Sem chances!! Todavia, quanto ao
essencial, somos sempre forçados a nos submeter, sem contestação.
No lar, por exemplo, aprendemos muito
cedo o princípio da autoridade, representada pelas figuras dos nossos pais.
Quantas de suas ordens e proibições são absurdas, emocionais e sem sentido?! E
no entanto somos obrigados a acatar, por uma questão moral: a do respeito à
hierarquia. Não há escola de ditadura mais completa, perfeita e acabada do que
esta, mesmo que a nossa submissão a essa autoridade paterna ocorra de forma
consensual, por amor recíproco. No relacionamento entre pais e filhos, na
maioria das vezes, não há diálogo.
Ao adulto compete mandar. Já a
obrigação do mais jovem é obedecer. Concorde ou não. Goste ou não. Precise ou
não. Isto é assim desde o princípio dos tempos. Prevalece o "senso"
de autoridade. E esta é apenas uma das múltiplas concessões que temos que fazer
diariamente, ao longo da vida.
Nenhuma pessoa, mesmo que ocupe altas
funções de poder – a chefia de uma redação, por exemplo – goza de irrestrita
liberdade. Tem que se reportar a um superior, neste caso específico o dono do
jornal ou os seus prepostos. Quando não está submetida a outras imposições, o
está a leis e instituições. Nenhum ditador, por exemplo, se sustenta sem a
lealdade do exército ou a subserviência do Judiciário, ou a cooperação dos que
lucram com a ditadura, ou o medo dos adversários. Mas estes grupos exigem a
contrapartida.
Outras concessões, ainda mais
profundas, com implicações muito maiores para o nosso amor próprio e para a
nossa felicidade, do que as das relações em família, terão que ser feitas, sob
pena de sermos considerados rebeldes, inadaptados, sociopatas, quando não
marginais.
A escola em que estudamos, as matérias
ensinadas, o trabalho que teremos que exercer etc.etc.etc, em geral são alheios
à nossa escolha. São outras tantas ditaduras que nos manipulam, exploram e
ameaçam. São imposições das quais não podemos escapar. E somos obrigados a nos
submeter, por bem ou por mal. Temos que fazer concessões.
O mesmo acontece no que se convencionou
chamar de "amor". No Ocidente, o relacionamento amoroso, até por uma
questão de tradição, foi transformado em uma espécie de jogo de poder entre um
homem e uma mulher. A partir do instante em que ambos assumem o compromisso
tácito de se ligar afetivamente, instintivamente se sentem
"proprietários" um do outro.
A cessão de uma parcela da liberdade
individual, de parte a parte, quase nunca é espontânea, ditada apenas pelo
afeto. É mais uma obrigação que nos é ensinada, quando não imposta. Caso não
pretendamos acabar sozinhos na vida, temos que nos submeter. Nessa disputa,
sempre alguém acaba sendo o dominado. Raros são os casos de igualdade de
direitos e deveres. Mas mesmo que sejamos os dominadores, temos que fazer
concessões e não poucas.
Por isso, repudio a arte engessada,
manietada, amarrada a regras e convenções (e o jornalismo também). A criação
artística precisa ser livre. Tem que brotar da essência do nosso ser. Deve
refletir o que somos de verdade e não o marionete manipulável em que a
sociedade nos transforma. Tem que ser pura emoção. À racionalidade destina-se a
filosofia e, por conseqüência, destinam-se as ciências, suas filhas.
A arte, sobretudo, precisa ser
instintiva, natural, selvagem. Trata-se da única forma de sermos autênticos. É
a nossa carta de alforria, a absoluta e irrestrita liberdade. Ninguém é forçado
a ser artista: músico, escritor, pintor, escultor, poeta... É uma escolha
pessoal. Ou é ou não é. É o modo de que cada um dispõe para ser livre, para
impor a personalidade, para deixar a marca no mundo.
A aceitação ou não do que o artista
produzir vai depender de critérios subjetivos de apreciação e avaliação dos
destinatários. É um risco a correr. A obra pode não ser aceita, no presente ou
no futuro. Pode não despertar nenhuma emoção nos espectadores. Pode não
encontrar acolhida em ninguém. Pode não transmitir qualquer mensagem. Pode já
nascer morta.
Ainda assim será válida, como
reprodução da visão pessoal do mundo de quem a produziu. Mas que não se
confunda arte com artesanato. A primeira é a expressão maior de uma emoção. A
segunda, em geral, é caracterizada por uma série de objetos bonitinhos, ou
funcionais, ou bizarros, mas produzidos em moldes pré-fabricados, com funções
práticas, reproduzíveis quantas vezes se quiser e por quem se dispuser. Nesse
ponto, qualquer concessão é a maior das autoviolentações. A arte é o nosso
"DNA". É o nosso ser. É a nossa vez. É a nossa voz...e única...
* Jornalista, radialista e escritor.
Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981
e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras
funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e
“Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos &
Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário),
página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia
Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
No caso da arte de escrever, quando se é obrigado a seguir manuais rígidos e técnicas opressoras, perde-se a liberdade e muito da espontaneidade e autenticidade. É claro que não se faz literatura "escrevendo ao ritmo da pena" como nos dizia a centenária professora Dona Yvonne Silveira, pois um bom texto precisa ser lapidado. Ainda assim, que não seja barbaramente amputado e vestido em camisa de força. Erro consciente, pois continuo fazendo o texto de uma maneira mais livre.
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