O direito contra a direita
* Por
Leonardo Boff
Prolongando reflexões
anteriores, vejo que para tentarmos sair da atual crise (se possível) duas pressuposições
devem ser consideradas seriamente. Caso contrário há o risco de perdermos tudo
o que tivermos projetado: o colapso da ordem capitalista e os limites
intransponíveis da Terra. Naturalmente trata-se de hipóteses, mas creio que
fundadas.
Primeira
pressuposição: o sistema do capital entrou em colapso que significa o seu fim
num duplo sentido: fim no sentido de que alcançou seu propósito fundamental:
aumentar a acumulação privada até o seu limite extremo. Como constatou Thomas
Piketty em seu O capital no século XXI: “os poucos que estão no topo tendem a
apropriar-se de uma grande parcela da riqueza nacional”. Hoje essa tendência
não é só nacional, mas global.
Os dados variam de ano
para ano, mas no fundo se resumem nisso: um grupo cada vez menor detém e
controla grande parte da riqueza mundial. Hoje são, segundo dados do respeitado
Instituto Suíço de Pesquisa Tecnológica(ETH), 737 atores que controlam cerca de
80% dos fluxos financeiros mundiais. Dentro de pouco serão muito menos.
Mas esse fim significa
também fim como colapso e desfecho final. A agonia pode se prolongar, pois ele
usa de mil estratagemas para se perpetuar, mas a crise é inevitavelmente
terminal. O capitalismo alcançou o teto e não consegue ir além; pior ainda, não
tem mais nada a nos oferecer, a não ser mais do mesmo que é aquilo que produz a
crise: sua ilimitada voracidade.
Ocorre que encostou
nos limites físicos da Terra; a exaustão dos bens naturais é de tal ordem que
não tem mais condições de se autorreproduzir pois precisa deles. Ao forçar a
sua lógica interna, pode tornar-se biocida, ecocida e, no limite, geocida. Como
não pode mais se autorreproduzir, volta-se sobre si mesmo, acumulando com mais
e mais fúria, via especulação financeira: dinheiro fazendo dinheiro. O lema continua
ser o mesmo, o perverso ”greed is good” (a cobiça é boa). Danem-se a
humanidade, a natureza e o futuro das próximas gerações.
Se no Brasil quisermos
sair da crise à base desta lógica, estamos escolhendo o caminho do abismo.
Dentro de pouco, todos experimentaremos na carne o sentido da metáfora de Sören
Kirkegaard: o palhaço convocou os espectadores a ajudar a apagar o fogo nas
cortinas de trás do teatro; todos riam e aplaudiam pois pensavam que era parte
do espetáculo. Ninguém atendeu o palhaço até que o fogo queimou o teatro
inteiro e todos os que estavam dentro e ainda os arredores.
A segunda
pressuposição, quase sempre ausente nos analistas econômicos convencionais, é o
estado gravemente doentio do planeta Terra. A aceleração produtivista está
destruindo, célere, as bases físico-químicas que sustentam a vida, além de
gerar uma espantosa erosão da biodiversidade (cerca de cem mil espécies,
segundo E. Wilson, desaparecem por ano) e o irrefreável aquecimento global,
cujos gases de efeito estufa atingiram atualmente os níveis mais elevados desde
800 mil anos. Com a subida de 2 graus Celsius de aquecimento, poderemos ainda
gestionar a biosfera. Contudo, se a partir de agora nada fizermos, como
asseverou já em 2002 a sociedade científica norteamericana, ainda neste século,
podemos conhecer o “aquecimento abrupto”. Este poderá chegar de 4-6 graus
Celsius. Sob esta temperatura, adverte a comunidade científica, as formas de
vida conhecidas não irão subexisitir e grande parte da humanidade será atingida
gravemente com milhões de vítimas.
Como sair desse
impasse? Talvez ninguém tenha condições de oferecer uma alternativa realmente
viável, pois ela possui uma dimensão que vai além do Brasil, pois é global. A
nós, intelectuais, cabe refletir, alertar e urgir medidas concretas. É o nosso
imperativo ético.
Minha bola fosca de
cristal me sugere três caminhos:
O primeiro, face à
gravidade da crise, criar um consenso mínimo, supra-partidário, envolvendo
parlamentares progressistas, sindicatos, empresas, a inteligentzia nacional,
ONGs, as igrejas e povo na rua, ao redor de um projeto mínimo de Brasil fundado
em alguns princípios e valores assumidos por todos (seguramente se exigirá uma
reforma política, tributária e pesado investimento na agroecologia). Estimo que
a liderança de Lula seria ainda suficientemente forte para encabeçar esta
proposta. O Governo de Itamar Franco, pós-crise Collor, poderia servir de
referência inspiradora.
O segundo, seria
constituir uma frente ampla e vigorosa de partidos progressistas, sindicatos e
outros grupos e intelectuais progressistas para fazer frente ao forte avanço da
direita com suas políticas neo-liberais, associadas ao projeto-mundo, liderado
pelos países centrais. A direita não tem uma preocupação social consistente,
pois ela está interessada no crescimento via PIB que favorece as classes
proprietárias e os bancos, deixando os pobres lá onde sempre estiveram, na
periferia.
Novamente, estimo que
a figura mais adequada para costurar esta frente progressista seria Lula. Mas
sua condução deveria ser pluralista e não personalista. A convergência na
diversidade, não anularia as singularidades dos partidos e dos grupos que
possuem sua identidade e sua história. Mas face a um risco geral, devem
relativizar o particular em função do universal.
O terceiro caminho
seria o PT fazer uma rigorosa autocrítica, (até hoje nunca fez) se recompor
internamente, reforçar o nexo do poder com os movimentos sociais, politizar o
mais rapidamente possível as bases e apresentar-se com uma agenda nova que
completaria a primeira cujos itens básicos seriam a infra-estrutura em saúde,
educação, transporte, a urbanização das favelas, a reforma política, a
tributária e a agrária, entre outros itens.
Mas vejo que o
desgaste do PT a partir de um punhado de traidores e ladrões que envergonharam
mais de um milhão de filiados e desmoralizaram o país face a si mesmo e ao
mundo, torna frágil, talvez até inócuo este caminho.
Por algumas destas
saídas se poderá superar a perplexidade, o sentimento de impotência e construir
alguma esperança de que ainda temos jeito. Seja como for, o que conta mesmo na
superação de qualquer crise é esse tripé, verdadeira Trindade da economia sã
que vai além do PIB pequeno ou grande: o emprego, o salário e a promoção social
das bases. Isso garantirá a sobrevivência da maioria e criará uma ordem
suportável.
Seja como for, à
direita política que excogita saídas fora da democracia, devemos opor o
direito. Não podemos aceitar a quebra do rito democrático pois a história
mostrou que ela não possui um compromisso sério com a democracia; para salvar
seus interesses não teme a quebra das regras.
Quanto a nós não nos é
permitido desistir de buscar o melhor para o nosso país, para além das
diferenças e desavenças que possam existir. O bem comum deve prevalecer sobre
qualquer outro bem particular.
*
Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como
projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração
de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso.
Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on
transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009).
Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.
Nenhum comentário:
Postar um comentário