Mulher
* Por Risomar
Fasanaro
Era ela esse desviver lento e repetido.
Essa memória de asas trancadas dentro do peito, naquele desexistir de sempre.
Uma cobra que perde a pele para não mais voltar. A tristeza de ser pássaro e
cadeia, asas e sombras, mar e rochedo. A monotonia da vida. Jogo de damas.
Noite após noite, o mesmo ritual; mais
uma vez desenroscou um dedo do pé e deixou que dele caíssem três bolinhas.
Guardou-as no bolso do roupão para o dia seguinte: as passagens do marido, o
sorriso na hora do almoço, as reclamações, o lanche dos netos. Foi dormir.
Às sete levantou. Antes de colocar as
meias, pois sentia muito frio nos pés, desenroscou o pé direito, virou-o e
aparou cinco bolinhas que escorreram do tornozelo. Com elas poderia comprar pão
e leite. Antes bastava uma, agora, com o aumento dos preços, já não sabia onde
iria parar.
Ainda faltava explorar o ventre. Foi o
que fez na semana seguinte. Desenroscou o umbigo e dele retirou o que
precisava.
A nora andava doente, precisava
ajudá-la a cuidar das crianças. Fizera aquilo a vida inteira sem que ninguém
percebesse; nem ela mesma, talvez. As rugas do rosto e das mãos menores que as
da alma.
Agora quase nada havia. Era uma casca
quase sem recheio, um ovo esquecido em um ninho durante anos. Nem mesmo o
pássaro que sempre guardara, batera suas asas dentro do peito. Talvez morta,
ave esquecida que ela não alimentara.. Morta na gaiola.
E veio o dia em que desenroscou dedo
por dedo das mãos e dos pés e nada mais
restara em seu interior. Espremeu os olhos e não conseguiu retirar nada.
Toda ela secara. A pele grudara-se aos ossos, esvaíra-se por inteiro em sua
transitoriedade de flor.
Uma das netas vendo-a desesperada
esfregando os olhos, perguntou-lhe qual era a razão do desespero. E ela, ou porque
não quisesse ou porque não soubesse, disse ser um argueiro. A menina quis
ajudar e soprou dentro do olho da avó, na tentativa de ajudá-la. Foi quando a
avó desfez-se no ar, espalhando pelo ar milhares de pétalas.
(Conto
que integra a antologia “O Buquê e o Sonho”, editora Lume, S.P. 1991)
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro. .
A vida massacrante das mães e esposas, unicamente.
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