sábado, 11 de abril de 2015

Silvério da Costa e o “Memorial do Medo”


* Por Urda Alice Klueger


É bem difícil, para mim, falar com propriedade desse ”Memorial do Medo” com que meu amigo Silvério da Costa agraciou o mundo, tamanha a sua profundidade e complexidade.

Silvério entra na minha vida faz mais de vinte anos, creio, como um romântico poeta português que trocou sua pátria pelo Brasil e aqui vive na cidade de Chapecó/SC, ganhador de prêmios literários a granel e dono de fecunda e contundente produção de versos, e assim o vi por muito tempo até que, ano passado, ele como que me deu um soco no peito que me tirou todo o ar, ao publicar esse livro único e corajoso e lhe dar o nome que deu, pois não é qualquer escritor que tem a capacidade de mergulhar na profundidade do medo como ele o fez, sem nenhum pudor, sem nenhuma reserva, de um jeito único e inesquecível.

Quando ainda muito jovem, li um livro chamado “A condição humana”, de André Malraux, que foi também um livro que me atingiu muito, e quando terminei de ler o ”Memorial do Medo” quedei-me a pensar por muito tempo, com muita seriedade, que esse livro de Silvério poderia se chamar “A condição humana II”, tão forte e tão profundamente essa condição é analisada nele, palavra a palavra, linha a linha, capítulo a capítulo, dor a dor, medo a medo. Claro que o que acabei de escrever é um diletantismo – nenhum outro nome estaria tão bem colocado nesse “Memorial do Medo” quanto o que o foi, pois o Silvério que eu conhecia ali foi forjado, no medo, no temor, no terror, na angústia de não saber se sobreviveria ao instante seguinte, no pavor de ver os amigos e os inimigos destroçados por armas e por bombas na injusta, fratricida e terrível (haverá guerra que não seja assim?) guerra de Angola, onde jovens que poderiam ter sido felizes na sua Portugal ancestral se transformaram em carne para canhão, a mando do ditador Salazar, que se aferrou ao poder enquanto pode, queimando na fogueira das vaidades a fina flor da juventude portuguesa, coisa bem a gosto do Capitalismo.

Chegando a Luanda em 1961, aos 22 anos, já depois de conturbada e difícil infância e adolescência na pátria, Silvério vai se dar conta com muita clareza do que é a guerra, uma guerra onde ele luta para salvar a pele, pois não reconhece como inimigos aos opositores angolanos, tão vítimas do Capital quanto ele. Por 26 meses vive a insanidade do medo sempre presente, assim como, com certeza, seus “inimigos” também estão a viver, pois também Angola está a queimar no medo e no horror a fina flor da sua juventude, no pavoroso processo de descolonização que também tem origem na ganância europeia, a princípio, e nas riquezas do seu subsolo, depois, o que quer dizer que também no Capitalismo.

São fracas linhas gerais, as minhas, sobre um livro de tal profundidade e magnitude, mas que não se deve deixar de ler. “Memorial do Medo” nos deixa marcas que imagino indeléveis, pois quem, como Silvério, poderia tê-lo escrito sem passar para o papel a terrível realidade de se viver sob as tenebrosas garras do pavor?

Por sorte, caso sobrevivesse, nosso autor tinha, como uma luz no fim do túnel, o aconchego de um amor no longínquo Brasil, e cá o temos, hoje, dentre nós.

Não sei o que te dizer agora aqui, Silvério. Penso que não há o que escrever além de que sou solidária contigo e te compreendo.

Blumenau, 02 de Abril de 2014.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).


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