Silvério da Costa e o “Memorial do Medo”
* Por
Urda Alice Klueger
É bem difícil, para
mim, falar com propriedade desse ”Memorial do Medo” com que meu amigo Silvério
da Costa agraciou o mundo, tamanha a sua profundidade e complexidade.
Silvério entra na
minha vida faz mais de vinte anos, creio, como um romântico poeta português que
trocou sua pátria pelo Brasil e aqui vive na cidade de Chapecó/SC, ganhador de
prêmios literários a granel e dono de fecunda e contundente produção de versos,
e assim o vi por muito tempo até que, ano passado, ele como que me deu um soco
no peito que me tirou todo o ar, ao publicar esse livro único e corajoso e lhe
dar o nome que deu, pois não é qualquer escritor que tem a capacidade de
mergulhar na profundidade do medo como ele o fez, sem nenhum pudor, sem nenhuma
reserva, de um jeito único e inesquecível.
Quando ainda muito
jovem, li um livro chamado “A condição humana”, de André Malraux, que foi
também um livro que me atingiu muito, e quando terminei de ler o ”Memorial do
Medo” quedei-me a pensar por muito tempo, com muita seriedade, que esse livro
de Silvério poderia se chamar “A condição humana II”, tão forte e tão
profundamente essa condição é analisada nele, palavra a palavra, linha a linha,
capítulo a capítulo, dor a dor, medo a medo. Claro que o que acabei de escrever
é um diletantismo – nenhum outro nome estaria tão bem colocado nesse “Memorial
do Medo” quanto o que o foi, pois o Silvério que eu conhecia ali foi forjado,
no medo, no temor, no terror, na angústia de não saber se sobreviveria ao
instante seguinte, no pavor de ver os amigos e os inimigos destroçados por
armas e por bombas na injusta, fratricida e terrível (haverá guerra que não
seja assim?) guerra de Angola, onde jovens que poderiam ter sido felizes na sua
Portugal ancestral se transformaram em carne para canhão, a mando do ditador
Salazar, que se aferrou ao poder enquanto pode, queimando na fogueira das
vaidades a fina flor da juventude portuguesa, coisa bem a gosto do Capitalismo.
Chegando a Luanda em
1961, aos 22 anos, já depois de conturbada e difícil infância e adolescência na
pátria, Silvério vai se dar conta com muita clareza do que é a guerra, uma
guerra onde ele luta para salvar a pele, pois não reconhece como inimigos aos
opositores angolanos, tão vítimas do Capital quanto ele. Por 26 meses vive a
insanidade do medo sempre presente, assim como, com certeza, seus “inimigos”
também estão a viver, pois também Angola está a queimar no medo e no horror a
fina flor da sua juventude, no pavoroso processo de descolonização que também
tem origem na ganância europeia, a princípio, e nas riquezas do seu subsolo,
depois, o que quer dizer que também no Capitalismo.
São fracas linhas
gerais, as minhas, sobre um livro de tal profundidade e magnitude, mas que não
se deve deixar de ler. “Memorial do Medo” nos deixa marcas que imagino
indeléveis, pois quem, como Silvério, poderia tê-lo escrito sem passar para o
papel a terrível realidade de se viver sob as tenebrosas garras do pavor?
Por sorte, caso
sobrevivesse, nosso autor tinha, como uma luz no fim do túnel, o aconchego de
um amor no longínquo Brasil, e cá o temos, hoje, dentre nós.
Não sei o que te dizer
agora aqui, Silvério. Penso que não há o que escrever além de que sou solidária
contigo e te compreendo.
Blumenau, 02 de Abril
de 2014.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale”
(dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
As guerras são o ápice da estupidez humana.
ResponderExcluir