Primeiro tratamento
* Por
Adailton Medeiros
A única coisa que
diferencia os Capitães do Mato dos Escravos é o cruel poder concedido a eles
pelos Senhores de Engenho, para castigar os seus iguais.
Estamos em pleno
século XXI, mais exatamente na metade da sua segunda década, e experimentamos
uma profunda mudança de formas, mas em relação aos conteúdos tenho uma
percepção de vivermos quase uma estagnação.
Co-existem em nosso
tempo o Escravo, o Capitão do Mato e o Senhor de Engenho. O Sambódromo, sob a
alegria disfarçada de tantas dores, é a mais evidente síntese disso.
Fui ao desfile das
campeãs este ano, onde a grande vencedora, a Beija-Flor, consagrou-se com o
patrocínio da opressora Guiné Equatorial. Escolhi o Setor 13, onde me permitia,
pela direita, ver a curvatura da belíssima Águia Redentora da Portela ao passar
por baixo da torre da imprensa; pela esquerda, o sentimento de dever cumprido
dos integrantes das alas na dispersão, seus risos, choros e intermináveis
agradecimentos com evoluções especiais para uma platéia fiel de fim de festa;
e, ao centro, o povão, os meus iguais.
No centrão, além de
invejar um montão de gente que levou sua cerveja de casa aos montes para beber
como se o mundo fosse acabar naquele dia, mesmo sem a Padre Miguel estar entre as
seis da noite – na mão dos ambulantes a latinha de 350 ml custava a R$ 7,00 e a
473 ml a R$ 10,00, um abuso -, vi uma senhora sacar de um pote plástico um
pedaço de broa, que deveria estar maravilhoso. Mais ao lado, um grupo tirava
gosto com salgadinhos diversos sem fazer cerimônia.
Todo aquele aperitivo
visual provocou os sentidos e nessas horas não há estômago que aguente. A fome
bateu. O jeito foi recorrer às empresas alimentícias vencedoras da concorrência
para explorar o local. Mas, por incrível que pareça, não havia concorrente,
somente uma empresa especializada em fast-food, o Bob’s, operava no local.
Fazer o quê. Encarei a fila do caixa durante um tempão e, para surpresa geral,
mais surreal que o enredo da Portela foi a resposta da atendente quando pedi um
Cheeseburger:
- O Cheeseburger só
daqui a uma hora.
- Como assim?
- Desculpe, senhor,
mas tem muita gente… eu só sou a caixa, prefiro logo falar pra o senhor não
ficar com mais raiva ainda…
- Entendo, tudo bem…
Àquela altura o jeito
era atravessar todo o setor, incomodar quem estava acomodado, pedir desculpas
pela aporrinhação, sair, comer qualquer coisa mais próxima ao recinto e
retornar, até porque era a vez do Salgueiro. Assim o fiz, mas fui barrado na
porta de saída, pelo encarregado:
- Amigo, eu quero sair
pra comer alguma coisa, porque aqui dentro só daqui a uma hora e meu estômago
tá gritando feito uma cuíca, mas vou voltar…
- Não! Se sair, pra
entrar de novo, vai ter que pagar outro ingresso!
- Você não entendeu,
estou fazendo isso contra a minha vontade, não queria sair, mas não tenho outra
opção, a estrutura não me atende…
O rapaz, do alto do
seu crachá de 24 cm x 21 cm, incorporado de todo o poder lhe concedido, lançou
sobre mim um sádico riso e sentenciou:
- Aqui é pra quem paga
o ingresso de R$ 5,00 e pra quem paga só isso é só Bob´s. Quer Mister Pizza,
vai pro Setor 1…
O encarregado, no
conteúdo, por incrível que pareça, carrega o sentimento do Capitão do Mato. Eu
me senti como um escravo impotente e, mais que isso, tive a sensação que o
Setor 13 era uma senzala. Aquelas cervejas que aqueles moços trouxeram de suas
casas provavelmente era uma violação, àquela broa da senhorinha, então, nem se
fala.
O que me restou foi a
indignação. Saltei para o meu século, saquei meu celular. Coloquei minha senha,
o aparelho acendeu, senti-me poderoso e me rebelei ao tirar uma foto do crachá
do Capitão do Mato para uma possível denúncia. Ele não me chicoteou, deixou-se…
Talvez essa seja a maior lição do episódio: a incógnita.
Mesmo assim fiquei
preso, não saí. Comi um Cheeseburger salgado e queimado oferecido por uma
professora que me fuzilou ao dizer que fui “invasivo” ao clicar o capataz, quer
dizer, o Capitão do Mato, o encarregado. Justificou-se que não era com ele que
eu tinha que tomar aquela atitude, em suas palavras, “ele não foi preparado
para ocupar aquela função”.
A conclusão que tiro
do episódio é a de que o escravo existe, só mudou a forma, mas sua essência
prevalece, assim como a do Capitão do Mato, também. Os conteúdos estavam ali,
patentes.
Quanto ao Senhor de
Engenho, a forma ficou mais sofisticada ainda, aparentemente não assume aspecto
físico, e por se tornar menos denso ganhou mais poder de onipresença,
onisciência e onipotência. Seu engenho é outro, a ponto de fazer um educador
jogar a seu favor. Que engenharia perversa…
“E ri-se a orquestra
irônica, estridente… / E da ronda fantástica a serpente / Faz doudas espirais …” (Castro Alves)
*
Fundador e Diretor do Cinema Ponto Cine – 1ª Sala Popular de Cinema Totalmente
Digital do Brasil -, e único cinema no mundo a só exibir filmes brasileiros.
Recebeu da Ancine – Agência Nacional de Cinema – o Prêmio Adicional de Renda em
2007, 2008, 2009, 2010 e 2011. E pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio de
Janeiro o Prêmio de Estímulo à Exibição Cinematográfica, em 2009, 2010 e 2011.
Adailton Medeiros foi ganhador do Prêmio Faz Diferença do Jornal O Globo, 2008,
Categoria Segundo Caderno/Cinema, pelo trabalho de difusão e democratização do
acesso ao cinema brasileiro.
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