Ante-diluviana
* Por Daniel
Santos
O temporal desventrava a cidade – o
homem viu da janela. A verruma das águas erodiu o lago da praça até irromper um
rio subterrâneo com igual fúria do que anseia se expandir, e se há oportunidade
...
A fauna abissal veio, então, à tona e,
em meio ao completo desastre, ele percebeu que uma senhora olhava-o do banco da
praça, através da chuva. Firmou a vista e, com sobressalto, reconheceu-a.
Era ela, a tal excêntrica que não lhe
correspondera à paixão décadas atrás, quando deixava já bem claro: pretendia
apenas a publicidade de si num infatigável teatro de sedução que lhe reforçava
poder e fascínio.
Agora, quase esquecida, emergia do
passado em meio ao dilúvio, sem a soberba de outrora. Ou não? Enquanto cismava,
ela subiu ao prédio e tocou a campainha. O homem espiou pelo olho mágico, quase
gritou.
Uma naja faiscava os olhos no corredor
e, ao adivinhar sua presa do outro lado, deu o bote, chocou-se contra a porta!
O homem caiu para trás. Só aliviou-se ao vê-la debandar, rumo às profundas de
onde viera.
* Jornalista carioca. Trabalhou
como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da
"Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo".
Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Fantasmas do passado, quando voltam, podem oferecer risco. Algumas vezes não.
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