A possível inspiradora de Capitu
A atuação de Machado de Assis como compositor foi, apenas,
ocasional. Foi, diria, só questão de oportunidade. Depreendo, da leitura das
muitas fontes que consultei, que em momento algum lhe passou, mesmo que
remotamente, pela cabeça atuar nesse campo artístico. Ou seja, ele nunca se
considerou “compositor”. Algumas vezes
sua atuação se deu para atender convite dos seus muitos amigos músicos. Raras
de suas “letras” foram escritas especificamente para serem interpretadas como
canções, ou seja, para serem cantadas. Aliás, algumas eram, na verdade, poemas,
publicados em seu livro “Falenas”, que ganharam roupagem musical: ritmo,
harmonia e melodia. E nenhuma se consagrou como composição e nem caiu no gosto
quer da elite intelectual, quer (e muito menos) do povão. Perpetuaram-se,
mesmo, como poesia pura, que de fato eram.
Em outra parte desta série de comentários destaquei que a
primeira experiência de Machado de Assis como letrista se deu em 1863, com a
composição da letra do “Hino Patriótico”, cuja música coube ao maestro Júlio
José Nunes. Teve, neste caso, diria, caráter “filantrópico”, ou promocional. A
letra foi publicada, em forma de anúncio, com ilustrações do artista Henrique
Fleiuss, na “Semana Ilustrada”. O produto da venda dessa edição específica do
jornal seria (e foi) destinado à campanha de arrecadação de fundos para a
aquisição de armas para o então desprovido Exército Brasileiro, pelo fato do
nosso País estar envolvido na chamada “Questão Christie”, com o poderoso
Império Britânico e ameaçado, inclusive, de ataque militar por parte da então
única superpotência global.
A segunda letra que Machado de Assis compôs, dois anos mais
tarde, em 1865, foi para o “Hino da Arcádia”, sociedade lítero-musical que ele
fundou e que teve curta duração. A música coube ao espanhol José Zapata y Amat.
Para muitos, esse seu parceiro era uma espécie de exilado político que teria se
envolvido em encrencas em sua terra natal, a Espanha. Todavia, é injusto que
seja lembrado, apenas, como uma espécie de agitador. Diga-se, a seu favor, que
além de bom compositor, era o maior empresário de música clássica do Rio de
Janeiro de então. Para lhe fazer justiça, é mister que se lembre que foi o
criador de ativíssima companhia de ópera na cidade.
Outra composição de Machado de Assis, que citei, foi a letra
da valsa “Lua da estiva noite”, em parceria com seu amigo, e parceiro de
xadrez, Arthur Napoleão dos Santos. Mencionei, ainda, de passagem, “Coração
triste”, com Alberto Nepomuceno. Todavia, para encerrar esse assunto, que trato
mais a título de curiosidade do que como aspecto de importância na vida de
Machado de Assis, cito o caso de “Lágrimas de cera”. Faço-o tanto pelo seu
parceiro, quanto pelo fato de que pode ter sido a fonte de inspiração para a
construção de sua mais famosa e polêmica personagem: Capitu. Antes de tudo, vou
logo explicando que não se tratou, propriamente, de uma letra, composta
especificamente com essa finalidade. Foi, isso sim, um poema, publicado no
livro “Falenas”.
Não sei de quem partiu a ideia de musicar essa peça
literária, se de Machado de Assis ou se do maestro que a musicou. E este,
qualquer brasileiro, minimamente atento, conhece. Trata-se de Francisco Braga.
Esse nome não lhe sugere nada, atento leitor? Pois deveria. Pense bem. Sim, é
ele mesmo, o autor do “Hino à Bandeira”. Sua biografia deveria ser melhor
divulgada (na verdade deveria pelo menos ter “alguma” divulgação, já que nunca
teve nenhuma) por ser das mais exemplares. O músico foi mais um desses tantos
brasileiros que, contra tudo e contra todos, se impuseram pelo talento. De
origem bastante humilde, foi, entre outras dificuldades, vítima de preconceito racial
(arraigado, infelizmente, ainda hoje na sociedade brasileira) por causa da cor
da sua pele: era mulato, assim como Machado de Assis.
Mas Francisco Braga, clarinetista, era um sujeito lutador e,
sobretudo, dotado de enorme talento. Tanto que, concorrendo com músicos
notáveis e, diga-se de passagem, bem “apadrinhados”, superou a todos e obteve o
primeiro lugar em um concurso, cujo prêmio era uma bolsa de estudos no renomado
Conservatório de Paris. Porém esse não é o principal motivo (embora seja um
deles) que me levou a destacar essa composição específica. A razão é mesmo sua
letra (na verdade poema do livro “Falenas”, reitero). Nela, Machado de Assis
faz referência a uma mulher, com a consciência pesada por determinada culpa
(que o autor não revela qual) que vai a uma igreja, na esperança de expiá-la.
Está profundamente arrependida, mas diante do altar não chora, talvez para não
atrair a atenção de ninguém, embora sinta irresistível vontade de chorar. Em
vez disso, acende uma vela, cuja cera, ao derreter-se, “chora por ela”.
Muitos analistas da obra machadiana vêem, nessa mulher do
poema, a verdadeira Capitu, que sabe dissimular sentimentos e não manifesta
publicamente que se sente culpada ou que esteja indignada com incabíveis
suspeitas alheias sobre eventual culpa que não tenha. É tão enigmática quanto a
tão polêmica personagem de “Dom Casmurro”. Se é fato ou mera especulação dos
estudiosos é impossível saber. Pessoalmente, entendo que se trate, apenas, de
coincidência, embora não bote minha mão no fogo por tal versão. Em “Lágrimas de
Cera” Machado de Assis diz, em determinado trecho:
“… Da vela benta que ardera,
Como tranqüilo fanal
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.
Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, a chama a arder
Chorar é que não podia”.
Como amante tanto da boa música, quanto da obra de Machado
de Assis (e, por razões até pessoais, sobretudo de sua poesia), gostaria de
poder ouvir “Lágrimas de Cera” cantada, na voz de algum dos tantos excelentes
cantores que aprecio. A melodia deve ser uma lindeza, a julgar, por exemplo,
pela melodia do nosso magnífico “Hino à Bandeira” de Francisco Braga. Mesmo sem
nunca ter ouvido essa canção, suponho ser marcante e memorável, dado o talento
dos parceiros. Está aí a sugestão para algum promotor cultural inteligente e de
bom gosto. Que tal gravar, e promover nos meios de comunicação, “Lágrimas de
Cera”?!!! Ou será que Machado de Assis e Francisco Braga não merecem esse
investimento, mesmo que seja arriscado?! Quem sabe, isso até poderia dirimir a
dúvida se a mulher que fez a vela chorar por ela tem, ou não tem, qualquer
coisa a ver com a enigmática Capitu.
Boa leitura.
O Editor.
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. . .
Deu uma grande volta, mas chegou ao ponto de uma forma brilhante.
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