A picada dolorida de Lou Reed
* Por
Ademir Assunção
Ele estava realmente
em apuros. Pisando fundo demais no acelerador. Voltar atrás, usar o freio?
Ainda não. Quando você é um outsider puro-sangue, o Corvo de Poe não é uma
esfinge tão assustadora — diziam suas canções, naquela voz de quem acabou de
cometer um crime passional. Apenas um personagem durão do romance noir adaptado
a seca turbulência da juventude urbana? Engano seu. Aqueles versos eram mesmo
reais. Se fossem somente figuras de linguagem, assim mesmo seriam suficientes
para causar sérios curto-circuitos nas engrenagens do sonho americano de
prosperidade. Mas se nenhum calafrio percorreu sua nuca quando você ouviu
"The Kids", esquece, tudo bem, há pouco a dizer. Ouça, baby. Listen
to my heartbeat no meio dessa fuselagem paranóica. Esse é um poema escrito com
adrenalina nas veias do cérebro.
1
Você pode imaginar o
tremendo susto: um cara de blusão negro usando a emergente linguagem do
rock'n'roll numa atrevidíssima declaração de amor à euforia das picadas.
"Heroin is my wife and is my life" (Heroína é minha mina e minha
vida). Se a elétrica pulsação do rock já era suficiente para encher de grilos a
cabeça da próspera potência do novo mundo, o mergulho de Lou Reed nos becos
selvagens da barra pesada aterrorizaram até os arcanjos da nova cultura industrial.
Um espelho negro dos excluídos, com ferimentos graves na própria arquitetura
pop. Não foi somente a crônica do submundo que o transformou num obelisco.
"Minhas ambições
são um pouco maiores do que se diz por aí. Eu quero ser o maior escritor da Terra,
alguma coisa como Dostoievski, Shakespeare... eu quero fazer no rock alguma
coisa do nível de Os Irmãos Karamazov, por exemplo" (Lou Reed, no
lançamento do álbum The Bells, 1979).
2
As letras, a colocação
de vozes, os arranjos esquizóides em seus discos remexem nos ossos da
linguagem, abrem as porteiras da experimentação. Os primeiros elepês do Velvet
Underground — The Velvet Underground and Nico e White Light/White Heat — levam
em conta as ousadias de Marcel Duchamp & Ornette Colleman & John Cage
& música eletroacústica. John Cale se ligou cedo nas experiências mais
radicais do século 20. Muitas das surpreendentes inovações musicais do Velvet
devem-se a ele. Com Reed, os dois souberam provocar transformações estéticas de
alta voltagem.
Zumbido sutil de
guitarras, a bateria saindo pelo outro lado, ruídos vocais, um curinga com
timbre impessoal comentando o bárbaro roteiro de "Lady Godiva's
Operation". Violinos e orquestração psicótica em "Winter Song".
A voz de Nico como um canto de sereia underground-renascentista em "Wrap
your troubles in dreams". O melancólico distanciamento de "Eulogy to
Legny Bruce", camuflado em cordas picotadas. Cruzamento de vozes,
narrações simultâneas, discursos diferentes, o texto sussurrado como uma
homilía, riffs de piano, base minimal em "The Murder Mistery". O
Velvet barbarizou quando o rock ainda engatinhava. Ariscos, arriscaram
brilhantes experiências. Jamais foram tão populares quanto Jesus Cristo.
3
Mas por que tanta
ênfase nessa rebelião estética? Simples: de Lou Reed sempre falam sobre o wild
side de sua poesia. Ele fez mais: assumiu a rebeldia do rock em todos os
sentidos, inclusive na estrutura musical. Agrediu o ouvido até dos mais
fanáticos roqueiros com o álbum duplo Metal Machine Music — uma cotovelada nos
tímpanos, ruído levado às últimas conseqüências. Nos dois elepês uma
parafernália de guitarras distorcidas tece um ruidoso inferno. Levou seis anos
para ser gravado. Teve alto índice de devolução. Os fãs chiaram. Grande parte
dos caras que recusaram aquele radicalismo estava mais interessada em assistir
Lou Reed empacotar no palco, depois de empurrar goela afora os últimos versos
de "Heroin".
"Antes do Metal
ser lançado todo mundo perguntava: ‘Quando é que você vai fazer um solo de
guitarra?’ Eu pensava: porra, que chato! Mas agüenta aí. Para aqueles que
queriam ouvir um solo de guitarra fiz Metal Machine Music. Foi quase um
suicídio."
É aquela velha
historinha: aquilo que o público vaia, cultive-o, é você. Lou Reed estava
querendo novos desafios para abrir novas cicatrizes no rock'n'roll.
4
Desde os remotos
tempos da poesia falada, poetas fizeram galhos estalar, madonas desnudarem-se e
lebres desafiarem búfalos em seus versos. Reed injetou selvageria nas
estruturas conflitantes da vertigem industrial. Poucos desceram tão fundo no
redemoinho das metrópoles pré-século 21. O anticanto de "Walk on the Wild
Side", a auto-imolação cruel em "The Kids", a agonia dopada de
"Waiting for the man", sem contar a extenuante desolação de
"Heroin", são convites para desviar o foco e encarar de frente o
sombrio espetáculo humano dos fodidos e desgarrados. Nem vem dizendo que você
não tem nada com isso, brother! — intima, descaradamente, sua poesia.
5
Não se trata de
piedade, ora vamos. Ele jamais choramingou pelos cantos. Talvez por isso seja
tão difícil tirar da cabeça aquela voz soltando em trancos melancólicos sua
desolação, cuspindo raiva com solos sutis, tropeçando nas botas de Negros
Sargentos que não se chamam Peppers. E aquele sax ondulante, chamando,
seduzindo, quase te levando para o lado selvagem da cidade.
*
Poeta e jornalista
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