Sujeito
Zero (7)
* Por Sergio
Vilas Boas
Exatamente por
trabalhar muito
é que à tarde Seu Edmundo se sentia cansado. As têmporas infladas latejavam.
Também, isto é uma certeza minha, ele não se ajudava. Só comia feijoadas,
rabadas, frango assado no barro; lingüiças e pés de porcos em feijão roxinho;
chouriços, torresmos e ovos fritos talvez na banha; arroz-de-carreteiro ou
baião-de-dois; no pão, só manteiga ou queijo mussarela derretidos; de
sobremesa, suspiros e/ou doce de leite. Pouco ou quase nada de verduras,
legumes e frutas. Fodam-se as coronárias, não é? À merda com essa frescura! Mas
duvido que ele se defenderia com estas palavras.
Quando vinha o mal-estar, refugiava-se
no banheiro da agência, local malconcebido, rarefeito de ar puro e de
claridades. Da estreita janela, era possível ver apenas telhas de amianto
cobertas de um lodo negro calcificado e paredes descascadas. Às vezes um gato
preguiçoso invadia a lente.
Gotas de água vindas do dreno dos
aparelhos de ar-condicionado dos andares acima iam virando gotículas ao longo
da queda, chocavam-se contra a esquadria do basculante e deixavam na superfície
do vidro um fresco suor. Mesmo ali, naquele espaço hermético, a metrópole
rugia. Se Seu Edmundo fosse se ocupar de pequenos fenômenos, morreria de
loucura, não de câncer.
No chão do banheiro da agência encontra
um jornal com a seguinte manchete (de fevereiro de 1986): “Plano Cruzado
revoluciona a economia brasileira”. Seu Edmundo apanha-o por necessidade. Entra
numa das cabines do banheiro e senta-se sobre o sanitário. Abre o jornal nas
páginas policiais. Não as folheia para se informar e sim para se ocupar.
Antes de começar a leitura das páginas
vencidas, nota que a lâmpada do spot embutido no forro de gesso está queimada.
Muda para uma cabine em que há luz, mas não encontra papel higiênico, e sim um
carretel com tiras do último puxão. Alguém entra no banheiro para estragar sua
estratégia de descanso. Pretende que não reconheçam seus sapatos pelo vão entre
o piso e a portinhola.
Seu Edmundo usou o mesmo modelo de
sapatos - Vulcabrás 752 - a vida toda. Anualmente, comprava um par, mesmo sem
necessidade. Organizava sobre o guarda-roupas as caixas em ordem cronológica de
aquisição. Quando o uso do velho lhe parecia uma teimosia absurda, apanhava a
caixa da vez, retirava o par novo e era só este, para tudo, até acabar.
Para não ser reconhecido pelos sapatos,
suspendia os pés ridiculamente. Antes de
entrar na cabine ao lado, o intruso abre a torneira. Daí até girar o trinco e
suspender a tampa do sanitário foi um intervalo breve. O sujeito suspira.
Estavam os dois ali para nada, extraviados como o jornal esfacelado sob a pia.
Haveriam de se cruzar qualquer hora dessas.
O sujeito estava fugindo do serviço ou
simplesmente achava que o importante era ficar o maior número de horas
possíveis à disposição dos superiores? Porque Seu Edmundo era assim. Seu ideal
de lealdade consistia em chegar primeiro e sair por último. Era a forma mais apropriada
de dar sentido ao cotidiano corporativo.
Como trabalhou na mesma agência
bancária os últimos dezoito anos de vida profissional, em diversas funções – da
mais elementar para alguma que exigia assinatura, mas sempre como escriturário
–, conhecia todos os colegas. Morreu levando consigo as opiniões sobre cada um.
Não abria a boca para elogiar ou difamar quem quer que fosse. Não ofendia nem
se ofendia.
Ele sai da cabine, atira longe as
páginas amarrotadas e começa a lavar as mãos com sabonete líquido ácido.
Enquanto isso, na outra cabine, tudo se repete ao inverso, exceto o desenrolar
do papel higiênico e o corte abrupto. A fivela toca o chão, zumbe o zíper
fechando-se, os metais da fivela tilintam. Seu Edmundo fica na expectativa de
que o intruso seja alguém disposto a conversar sobre qualquer assunto
não-objetivo.
Abaixa-se
para identificar o sujeito pelos sapatos mas este abre a porta da cabine
repentinamente e o surpreende. Era Laerte, o novo gerente, o monstro que agora
passa a encará-lo através do espelho posicionado no lado oposto às portinholas.
-
Bom lugar pra se esconder do serviço, hã? (Diz o cara exibindo os dentes,
enquanto ajeita a gravata apressado).
Depois
abre a torneira, ensaboa a mão. Como sempre, não olha nos olhos do palerma do Seu
Edmundo. Laerte desconsidera o escriturário Nível III, Referência 44. Além de
inútil e dispensável, tem muito tempo de casa. Para Laerte, o que conta é a
expressão contagiante, a ejaculação diária de idéias para impressionar mais do
que solucionar.
Seu
Edmundo, por sua vez, tampouco o fita, mais por medo que qualquer outra coisa.
Transformava-se em cão vira-latas diante de toda autoridade constituída ou
pressentida. Se surpreendido ou contrariado nos seus desejos mais infantis,
atrapalhava-se todo, tropeçava em chão plano e liso, onde não havia obstáculos
físicos.
-
E a compensação de hoje, como anda? (Pergunta o cavernoso).
-
Quase.
-
Quase? Então, por que está aqui, fazendo hora? Desempaca, vá trabalhar.
Seu
Edmundo enxágua o rosto, finge estar apenas de passagem. Arranca três toalhas
de papel absorvente para se enxugar. Provocativo, Laerte apanha debaixo da pia
as páginas vencidas do jornal, arremessa-as no lixo e sai, como se dizendo
“essa porcaria não devia mais estar aqui”.
A
porta do banheiro tranca-se com uma batida sibilina. Seu Edmundo recobra a cor.
Sofre um arroubo de insatisfação que talvez tenha durado menos do que devia.
Durante toda a vida foi incapaz de odiar, vingar ou peitar alguém. As plantas
foram testemunhas oculares disso.
Sujeito difícil e imprevisível esse
Laerte. Ele não conquistaria seu sonhado milhão nem em setenta anos de vida e
cinqüenta e cinco de Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada. Então
por que tanta cobrança em relação a um homem prestes a se aposentar?
Seu Edmundo, claro, sempre quis se
livrar do tipinho; de sua voz grossa e descompassada; da cara de cangaceiro
corada; do nariz imenso e grotesco; das narinas vaporosas. A boca de Laerte
engoliria uma bola de bilhar com folgas, como Miguel bem diz. E a cabeça
ovóide, sem nuca. Cavernoso inumano!
Antes de atirar no lixo a toalha de
papel que usou para enxugar o rosto, Seu Edmundo retira o jornal da lixeira e o
coloca novamente sob a pia. Outro
extraviado pode precisar, pensa. Ele tinha formas infantis de vingança. Seu
maior medo era os colegas o flagrarem tentando (às vezes em vão) escapar do
próprio casco, como os caramujos.
Restava-lhe concluir com dignidade a
compensação do dia. Se (muita gente se desgraça por causa de um se) dependesse de sua vontade – puts,
como as coisas estão costuradas umas às outras, Alma! –, ele se pouparia do
desprazer de cruzar com Laerte todo santo dia. O excesso de tolerância, por
outro lado, pode arrasar. Pior do que ter sido sedentário, fumante desbragado e
ex-alcoólatra, foi ser fujão.
* Jornalista, escritor e
professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário