Clídio
Nigro, o compositor de “Olinda, quero cantar”
* Por
Urariano Mota
Para saber quem foi
Clídio Nigro, o mais popular compositor de frevos de Olinda, em dois domingos
conversei com os filhos Cleonice Nigro, Fernando Nigro e, por telefone, com Cláudia Nigro. A essas conversas
acrescentei uma com o esposo de Cleonice, Jairo Correia Peixoto.
Entrevistar, ou melhor
dizendo, conversar, é também muito aprender. E neste caso particular, para mim
foi somente aprender. Espero que vocês tenham também descobertas semelhantes às
que eu tive, como por exemplo: a existência de um Senado em Olinda, com direito
à foto histórica dos senadores; o valor espantoso dos direitos autorais do
frevo mais cantado em toda história, pois multidões de jovens gritam nas
ladeiras e pulam de felicidade ao som de “Olinda, quero cantar”. E mais a
cômica origem do frevo Bando de Conde.
Por último, mas já no
começo, saibam deste fenômeno inédito, intrigante e curioso: um frevo criado
por um compositor depois de falecido. Como é?!
Se duvidam, mantenham pelo menos a curiosidade em um minuto de
dúvida.
– Cleonice, quem foi Clídio Nigro?
– Clídio Nigro era um homem simples, músico,
tocava vários instrumentos. Ele tocava piano, tocava bandolim, tocava violão,
cavaquinho, pistom também tocava. Mas era um pai de família simples, escrivão
do cartório de Olinda. Gostava muito de sentar ali, onde hoje é o Bar de
Peneira, no Senado, que ele chamava O Senado de Olinda. Ele e os amigos dele
para ficarem ali conversando. Olinda na época, na cidade alta, todos nos
conhecíamos, porque eram famílias que nasceram ali, foram criadas ali, no sítio
histórico. O miolo de Olinda era ali. Mas em época de carnaval, os amigos
ficavam distanciados, porque uns pertenciam ao bloco do Guaiamum, outros ao
Bloco de Batutas. Então eles eram amigos, mas no carnaval ficava cada um na
sua.
– Então os grandes blocos do carnaval de
Olinda não eram nem Elefante, nem Pitombeira.
Cleonice – Não. Eram
Guaiamum na Vara, Batutas e Donzelinhos.
Os três grandes clubes de Olinda, da época do meu pai. Todos os amigos
do Senado, quando chegava o carnaval, se separavam.
– Amigos do Senado? O que é isso, o Senado?
Cleonice – Conhece
não? E o Senado não é lá na calçada de
Peneira?!
Fernando – Da calçada
onde hoje está o Bar de Peneira tem uma foto histórica, tem uma foto da calçada
com os Senadores, que ficavam lá sentados. Essa foto tem na Bodega do Véio, com
todos eles que participavam.
Cleonice – Ali, aquela
calçada, era considerada por eles como o Senado de Olinda. Eles se reuniam pra
conversar, trocar ideias, dizer as coisas deles e da cidade. Mas na época de
carnaval ia cada um pros seus blocos.
– Quando é que Clídio Nigro nasceu pro
carnaval?
Cleonice – Quando ele
começou a compor pro carnaval? Para os blocos ele já compunha, porque tem, ó,
Banho de Conde, que é da época do Guaiamum, do Batutas, ele já tinha muita
música, já, da época do Bloco Guaiamum na Vara. Tem outras também com Lídio
Macacão, que ele compunha. Ele tinha parceiros, Wilson Wanderley, que era advogado
muito famoso, tanto que Banho de Conde é dele e de Wilson. Vieira.
“Banho de Conde
Vou formar a turma
Prá tomar banho na
beira do mar
Vou ficar molhado
Eu vou dar água pelo
carnaval
Vem padroeiro fiché
Que eu acendi o painel
Não mergulhei, mas me afoguei
Um banho de maré
tomei."
https://www.youtube.com/watch?v=zybjv87xhNk
- Como nasceu Banho de
Conde? E o "padroeiro Fiché", quem era?
A esta altura, devemos
chamar Jairo Correia Peixoto para esclarecer.
Jairo – “Banho de
Conde” é uma expressão antiga. Significava “o que deu errado”. Batutas era
feito por amigos de seu Clídio: Otoniel Mendes, o irmão dele, Evilásio
Mendes... E tinha na cabeça de Batutas um senhor, que era inglês, que veio para
o Brasil, e que comandava a Great Western, a antiga Rede Ferroviária Federal.
Então inventaram um banho à fantasia, no Carmo, aqui em Olinda. O Carmo era uma
balaustrada bem alta, o mar quebrava bravo, não tinha essa calmaria que tem
hoje, com o dique, construído na década de 60. Então Batutas programou um “banho
à fantasia”, e saiu de lá dos Milagres com a nau. Fizeram uma nauzinha, só que
ao chegar na altura dos Milagres naufragou. Aí Wilson Wanderley olhou para
aquilo e disse “olha só, Clídio, o banho à fantasia de Batutas em que deu...”.
E Clídio respondeu “nada, vamos escrever uma letra pra esses meninos”.
– Mas o que era o”banho à fantasia”?
Jairo – Você se
fantasiava com papel, botava uma orquestra pra tocar frevo, e depois ia- se
embora tomar banho na praia. Pulava com fantasia e tudo. Era banho à fantasia
mesmo... E nesse dia não teve banho à fantasia, porque o barco virou, afundou
lá nos Milagres, não chegou no Carmo pro banho. Aí eles escreveram: “Vou formar
a turma pra tomar banho na beira do mar. Vou ficar molhado, mas vou dar água em
pleno carnaval...”. “Dar água” era outra expressão que significava que falhou.
“Vem, padroeiro Fiché”
– E o Fiché era...?
Jairo – O Fiché era o
que comandava a Great Western. É seu Fisher, o inglês. Mas fizeram a corruptela
para Fiché. “Vem, padroeiro Fiché”. Por que padroeiro Fiché? Pelo seguinte:
Batutas, numa das festas de São João, quis fazer uma homenagem a Fisher. Você
sabe que tem o São João do carneirinho, não tem? Pois bem, imitaram a lapinha
de fim de ano, mas na hora em que caiu a lapinha, em vez de aparecer a imagem
de São João, apareceu a foto de Fisher. Trocaram o santo pelo poderoso da
ocasião. Aí Wilson Wanderley e seu Clídio botaram “vem poderoso Fiché”, por
causa disso. Muita gente canta sem saber por quê.
–Eu li que certa vez
passava o Elefante, e o povo todo cantando “Olinda, quero cantar...”, e Chico
Buarque, vendo aquilo em Olinda, disse:
“Isto é que é o verdadeiro compositor popular. Olha, o povo inteiro cantando a
música. Este é que é o compositor popular”. Jairo, você se lembra das circunstâncias
em que foi criado o “Olinda, quero cantar”?
Jairo – Ah, Elefante
tinha um hino que não era um hino, era um desadouro. (Cantarola) “É-lé-fante,
é-lé-fante, é, é grande, é o maior da nossa geração...”. Isso era o hino de
Elefante. Cláudio Mirula, filho mais velho de Clídio, disse a ele: “Pai, faz um
hino pra Elefante”. Pitombeira já tinha o dele, “bate-bate com doce eu também
quero...”. Clídio tinha composto na época uma música sobre Olinda, Olinda
numero1, que era a que cantava a Pitombeira: “Olinda, estou de novo com
você...”. Aí já tinha a letra pronta. Chamou Clóvis Vieira e disse: “Clovis, o
meu filho tá pedindo um hino pra Elefante. Vamos fazer umas modificações nessa
música”. Pronto. Aí modificaram aquela música que era para Olinda, e fizeram o
Hino de Elefante.
– Me situe por favor. Qual era “aquela música”
que ele modificou?
Jairo – Não existe
mais. Ele modificou pra fazer o Hino de Elefante. E a outra esqueceu. Deixou
pra lá. Surgiu no lugar o Hino de Elefante.
https://www.youtube.com/watch?v=siyOZzK1k0Y
“Ao som dos clarins de
Momo
O povo aclama com todo
ardor
O Elefante exaltando
as suas tradições
E também seu esplendor
Olinda, este meu canto
Foi inspirado em teu
louvor
Entre confetes e
serpentinas
Venho te oferecer
Com alegria o meu amor
Olinda! Quero cantar a
ti esta canção
Teus coqueirais, o teu
sol, o teu mar
Faz vibrar meu
coração, de amor a sonhar
Em Olinda sem igual
Salve o teu Carnaval!”
– Mas foi de imediato um sucesso?
Jairo – O sucesso foi
sendo construído ao longo do tempo. Porque o sucesso da época era o Hino de
Pitombeira. Não devemos esquecer que Elefante nasceu de uma dissidência de
Pitombeira.
Mas voltemos a
Cleonice Nigro.
- Eu soube de uma
história muito interessante: quando Olinda recebeu o título de Patrimônio
Cultural da Humanidade, o que houve com a senhora?
Cleonice – Logo depois
que Olinda recebeu o título de Patrimônio da Humanidade, na época do carnaval,
chegando o carnaval, eu tava em casa e aquilo sempre fazia assim: “pega o papel
e lápis”. Aí eu peguei papel e lápis. Aí ele mandou.
(Cleonice começa a
cantar, boa cantora que é, um frevo-canção póstumo de Clídio Nigro, que teria
guiado sua mão em fevereiro de 1983:
“A saudade dói, a
saudade dói
Neste clima quente
Olinda que mexe com a
gente
E o tempo não destrói.
O carnaval vai
chegando
O povo se balançando
Festejando sua vitória
Festejando sua vitória
No seu festival de
glória”.
E solfeja os acordes
finais do que seria o frevo póstumo: “pararará parantantan, pararará
parantantan, pararan, parará, parará. Pan…”.)
E retoma: - Vem assim,
ó, vem assim na mente. Música e letra ao mesmo tempo.
– A senhora tem isso como uma mensagem dele?
Cleonice – Claro, ele
mandou. Foi a primeira.
– E a senhora compõe fora disso, sem mensagem?
Cleonice – Não, não.
Foi só através dele mesmo. Porque a minha sintonia com meu pai era muito
grandiosa. Tanto que ele gostava de música e eu gosto. Eu canto. Cantar é amor,
é isso que eu faço.
– Qual o título desse frevo que ele mandou?
Cleonice – “Exaltação
a Olinda”. Ele botou título e tudo. Aí o maestro Nunes, por intuição dele, eu
fui lá e ele fez o arranjo. Eu tenho o arranjo desse frevo em casa. Mas jamais
gravei, preciso até registrar ele. Eu vou ter que registrar em cartório essa
música.
– Pode ser o primeiro frevo póstumo de
Olinda... Mas Clídio Nigro compunha em que instrumento? Ao piano, violão, ou
bandolim?.
Cleonice – Não, não,
não. Ele compunha como eu componho. Com um papel e um lápis. Ele tinha a música
na alma. Tudo de ouvido. Quem passava, quem fazia a partitura era o maestro
Nunes, todinha. Mas o meu pai entendia, porque cantava no coral, mas o que eu
disse pra você, “papel e lápis!”, eu via ele também fazer isso. Em qualquer
papel, o que estivesse no alcance na hora. E vinha me mostrar. “Oi, mas tá
muito boa”, eu dizia, entendeu? E como eu tinha com ele essa conexão, eu não
esquecia nadinha.
- Eu quero agora
destacar: o esquecimento que parece existir hoje em torno da pessoa e do
compositor Clídio Nigro; os momentos marcantes da sua vida como carnavalesco,
que dizem até que ele era carnavalesco sem ser folião...
Cleonice – Isso é
verdade. Ele estava presente em todos os blocos. Saísse Pitombeira, ele tava
lá. Saísse Elefante, tava lá. Mas não vivia pulando no carnaval não. Mas como ele mesmo se retratou, em uma
mensagem que ele mandou pra mim, depois de falecido:
“Tudo não passou de um
sonho o meu caminhar na vida. Caminhos tão serenos, numa existência tão
querida. Encontro a realidade e vivo novos sonhos, sublimes e tão lindos, quem
me dera nova vida”. Então ele retratou a vida dele assim, dessa forma.
– Então, a que se deve este esquecimento de
Clídio Nigro hoje? O seu frevo máximo aparece, mas ele não.
Cleonice – Olha, é a
preservação cultural, que não existe em Olinda. As pessoas esquecem (ouve-se um
canto de pássaro no jardim) muito quem realmente contribuiu para abrilhantar
(de novo, o canto do pássaro) a beleza cultural da cidade. (O pássaro,
novamente, cresce um concerto no jardim.) Esquecem.
– Quais são os principais frevos de Clídio
Nigro, além de Banho de Conde e Olinda número 2, que é o hino de Elefante?
Cleonice – Ele tem
Vassourinhas, Regresso, também o Regresso do Elefante, que é muito bonito e
pouco se toca, e outras que no momento eu não estou assim me recordando. Mas
sei que essas existem e ficam à parte, que não foram tocadas. As que mais se
evidenciam são estas: Olinda número 1, Olinda número 2 e Banho de Conde. E tem
a de Marim dos Caetés também, esqueci de falar. Marim dos Caetés também foi uma
dissidência da Pitombeira. Ele também tinha uma música referente a Olinda, com
Marim dos Caetés.
– Eu estava
pesquisando e vi que no Hino de Elefante, o “Olinda, quero cantar”, Clídio
Nigro compôs em parceria com Clóvis Vieira. Mas Clóvis Vieira era surdo. Como é
que foi essa história?
Cleonice – Mas existe
algum obstáculo? Existe não. Vem na mente. Ele escreve... o corpo físico não
ouve, mas o espírito ouve, tá ali.
– Mas me diga uma coisa: nesse frevo hino de
Olinda, a melodia é de Nigro, ou é a letra, ou é misturado?
Cleonice – Não, a
letra foi de pai, a letra é de pai. Agora, a melodia é dos dois juntos. Clóvis
era surdo, mas não era totalmente surdo não. Ele não era surdo de tudo, tudo
não. Ele tinha dificuldade de audição. Mas não era surdo total, entendeu? Mas
pra isso não é obstáculo não, viu?
– Clídio Nigro é um compositor de sucesso,
porque o sucesso é isto: todos os anos ele é tocado e cantado. O que foi que
rendeu de direitos autorais?
Cleonice – Os direitos
autorais são um negócio muito complicado, porque não tem como fiscalizar. Mas
ele tinha, e tanto que nos deixou essa herança. Ele é cadastrado como
compositor e nós, depois que ele morreu, nós temos na Ordem dos Músicos do
Brasil, nós recebemos, depois do carnaval. Sai um dinheirinho, dividido por
10... Para o que toca em Olinda, nas ladeiras, em todo Pernambuco, é fraco,
fraco. A música do meu pai não só toca no carnaval não.
– A senhora pode dizer o valor do último
direito autoral?
Cleonice – Dois mil e
setecentos reais para 1 ano. 270 pra cada um dos filhos. É ridículo, mediante o
que se toca.
Fernando – Pra gente
mesmo, o que mais gratifica a gente é ver tocar a música dele.
– Ele era reconhecido pelos blocos?
Cleonice – Ah, era,
reconhecido e reverenciado por todos os blocos. Todo o mundo passava lá, na
frente da casa da gente, nos Quatro Cantos. E quando ele esteve doente, em 82,
quando já estava perto dele partir, e os blocos todos passaram lá, e
reverenciaram ele. Sabiam que ele estava doente, todos os blocos passavam. Ele
ficava na janela e os blocos passavam, estandarte, cumprimentavam, chega as
lágrimas corriam dos olhos dele.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Importantíssimo resgate. Escrever sobre os grandes faz com que eles renasçam nas memórias distraídas dos brasileiros.
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