Ato de coragem
O escritor Fortunato Pasqualine
afirmou, com muita propriedade, se não me falha a memória em um artigo de
jornal (mas não me recordo qual deles), que "a verdadeira vida é um ato
dialogal, é uma comunhão. É ser e expressar-se juntos para sempre". Esse
"diálogo", destaque-se, nem precisa ser oral, cara a cara,
"vis-a-vis", como diriam os franceses. Não é necessário sequer que
seja uma "conversa", no sentido em que interpretamos usualmente esse
exercício de comunicação interpessoal.
Basta que conheçamos a obra, a vida e o
pensamento de determinada pessoa, com a qual comunguemos e nos identifiquemos,
seja por qual meio for, e o "milagre" já acontece. Sua experiência,
caso nos atraia e impressione, incorpora-se, sem que mesmo venhamos a nos dar
conta, definitivamente, à nossa. Torna-se nosso patrimônio pessoal.
Influencia-nos e muitas vezes até determina os rumos que iremos tomar na vida,
quer os pessoais, quer os profissionais ou, quem sabe, os literários, (se
tivermos talento e sorte para isso), não importa.
Foi o que aconteceu, por exemplo,
comigo, em relação ao jornalista e escritor piracicabano Sud Menucci, nascido
em 1892 (portanto, muito distante de pertencer à minha geração) e que morreu na
cidade de São Paulo em 1948, depois de uma carreira das mais limpas, honestas,
vitoriosas e produtivas em nossa imprensa diária.
A primeira vez que ouvi alguém falar
dessa personalidade foi em 1949, quando do transcurso do primeiro aniversário
da sua morte. Lembro-me que se tratou de um comentário, bastante trivial, feito
pelo meu pai, leitor compulsivo de jornais, que havia lido muitos textos desse
notável redator, do qual se tornara profundo admirador, a propósito das
solenidades levadas a efeito na Capital paulista, alusivas ao seu falecimento.
Ele falou qualquer coisa elogiosa a respeito da justiça que então se fazia com
esse jornalista, ressaltando, à guisa de comentário, a curta memória do
brasileiro em relação às pessoas que não merecem ser esquecidas, pelo exemplo
que dão e por suas grandes realizações, mas que quase sempre o são.
Não sei porque, esse nome se impregnou
profundamente na minha memória. Provavelmente, por ser bastante incomum: Sud
Menucci! Nunca antes, e nunca depois, soube que mais alguém se chamasse dessa
forma. Tem sonoridade e até uma certa poesia. Recende à Itália. É
italianíssimo, sem dúvida. O que mais,
afinal, senão isso, poderia impressionar a criança de seis anos de idade que eu
era nessa ocasião? Claro que nunca havia lido texto seu até então, embora meu
pai o lesse e às vezes tecesse comentários favoráveis.
O tempo passou, a infância perdeu-se em
algum lugar ignorado do tempo, foi embora, qual nuvem de fumaça, rapidamente,
sem que sequer me desse conta, e não pensei mais no caso. Nem no jornalista, e
muito menos nas circunstâncias em que ouvira falar a seu respeito. Em 1961, já
adolescente, cursando o colegial, preparando-me para enfrentar o Vestibular de
Medicina, o grande sonho de minha vida, um belo dia passei por determinada rua,
procurando o endereço de um amigo, com o qual combinara de estudar Física para
uma prova, quando, olhando para a placa, lá estava o nome que tanto me havia
impressionado na infância: Sud Menucci! Acendeu-se uma luz em meu cérebro.
Jovem, sumamente curioso, resolvi
pesquisar de quem se tratava. Fui à Biblioteca Municipal de São Paulo e logo
descobri que o referido jornalista havia trabalhado no "O Estado de São
Paulo", entre 1925 e 1931, tendo sido redator e crítico literário desse
tradicional jornal. Não me contentei com essas poucas e esparsas referências.
Resolvi (nem sei por que, mas creio que o motivo foi mais do que mera
curiosidade), ir mais a fundo em minhas pesquisas. Li vários dos seus textos e
achei-os profundos, elegantes, atrativos e altamente elucidativos.
Como
na época não havia o recurso do xerox, copiei muitas das suas crônicas e
avaliações de livros. Descobri que ele havia fundado a revista
"Arlequim" e saí à cata dessa publicação, com sucesso.
Posteriormente, descobri seu primeiro livro, "Alma Contemporânea",
datado de 1918, em um sebo de São Paulo e resolvi adquiri-lo. Não tardou para
que Sud Menucci deixasse de ser para mim apenas um nome, mencionado de passagem
por meu pai, ou a mera denominação de uma rua da Capital (depois fiquei sabendo
que há uma cidade do interior paulista com esse nome).
O tempo passou, ingressei no curso de
Medicina, mas por falta de recursos financeiros, fui forçado a abandoná-lo no
segundo ano. Decepção! Frustração! Amargura! E agora? Que profissão seguiria?
Afinal, precisaria trabalhar para garantir meu sustento se quisesse, como
queria, me casar e constituir família.
Hoje não tenho dúvidas de que o
fascínio por Sud Menucci, que surgiu do nada, por acaso, influenciou minha
decisão de abraçar o jornalismo, do qual estou aposentado, mas exercendo
ativamente. Afinal, uma vez jornalista, sempre jornalista! Secretamente, bem no
fundo da minha alma, acalento uma pretensão (um tanto maluca, é verdade, meio
infantil, talvez megalomaníaca e sumamente improvável). A de que, um dia, o
nome "Bondaczuk" desperte a
mesma curiosidade em alguma criança que Sud Menucci despertou em mim, e
determine também a sua trajetória de vida. Ilusão? Quem sabe?!! Afinal, como
garante o escritor David Mortensen, "comunicar-se plenamente com outro ser
humano, uma vez que isto propicia o risco de causar sua própria mudança, é
desempenhar o talvez mais corajoso de todos os atos humanos". E essa
coragem, essa permanente e exaustiva comunicação com os semelhantes, tornou-se,
em minha vida, muito mais do que profissão: é, hoje, ato tão trivial (mas
vital), como comer, beber ou respirar...
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Comunica bem e atrai a cada dia mais leitores, tenho certeza, embora silenciosos.
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