Na boca do dia
* Por
Mara Narciso
Uma boa estampa fácil
nos engabela. Difícil é encontrar respeito ao imperfeito numa sociedade movida
à beleza. Uma vez o primo Júnior teve sua participação questionada no desfile
de sete de setembro do Colégio São Norberto, onde estudava. Alguém não gostou
de vê-lo na rua entre os estudantes, e queria vetá-lo. Quis esconder o
diferente, no caminho inverso do que a mãe dele construiu: “eu o preparei para
viver da porta para fora, pois aqui dentro é só amor”.
Quão idiotas os
médicos podem ser. Quando o meu primo e amigo José Geraldo Mendonça Júnior,
conhecido literariamente e alhures como Penninha Júnior nasceu frágil como um
passarinho, com a cabeça desproporcional (um grande cérebro), e os músculos mal
desenvolvidos, com propensão à consequentes alterações esqueléticas devido à
fraqueza, a medicina disse que as suas características eram incompatíveis com a
vida, que não andaria e morreria logo. A minha obstinada Tia Ninha, desafiada,
contra-atacou, e através de massagem com mãos besuntadas de óleo construiu cada
fibra muscular do seu filho. Júnior crescia rápido, e a orientaram para que o
colocasse num molde de gesso, um artefato acolchoado com algodão, para dormir.
A força muscular foi se desenvolvendo de forma lenta. Conseguiu firmar o pescoço precariamente,
depois o tronco, sentou-se, arrastou-se e afinal, aos cinco anos, andou.
Em sua casa tinha
piscina, escola de judô, e muito amor. Suas limitações físicas foram vencidas
pela grande vontade de crescer, avançar, libertar-se, não se deixar aprisionar
por meros muros da mobilidade ou do preconceito, este bem mais difícil de
derrubar. Confiava em si, tinha coragem, otimismo, e sonhos que ninguém
conseguia segurar. Em busca dos recursos, esteve diversas vezes no Hospital
Sara Kubitscheck de Brasília para tratamento ortopédico. Suas mãos e pés
frágeis foram operados, ainda menino, e a coluna, quando tinha 16 anos. Devido
à fraqueza muscular, a sua coluna vertebral formou um “esse” que comprimia
pulmões e coração, ameaçando sua sobrevivência. Foram feitos quatro furos em
sua calota craniana, e também nos joelhos e um terrível objeto de tortura teve
lugar. Foi esticado a ferros. Quando ele viu a minha mãe Milena e a dele
Nininha, ao seu lado se desesperarem, num hospital em Belo Horizonte, mostrou
Cristo crucificado na parede, e pediu para que elas parassem com aquilo, pois
ele tinha remédios contra dor para tomar, e Ele não tinha.
A cirurgia de
colocação de uma haste de metal em sua coluna teve sucesso, e o deixou livre
para morar sozinho em Belo Horizonte, ocasião em que começou a fazer poemas
numa máquina de escrever. Sua poesia concreta rendeu muitos versos e um livro
chamado “A parte do todo”. Empolgado com a repercussão do seu trabalho
(publicação recente), que tinha começado entre os pioneiros do Salão Nacional
de Poesia Psiu Poético, que completará 30 anos em 2016, estava organizando o
seu segundo livro, cuja capa Fernando Yanmar Narciso tinha produzido. O nome da
obra seria “Na boca da noite”.
Amante das coisas
boas, Penninha era um homem de paixões profundas e convicções quase dogmáticas.
Cruzeirense completamente azul tripudiava dos atleticanos com seu famoso
“Datapenna” do Facebook, anunciando os gols feitos contra o Atlético. Petista
histórico, não abandonou o barco nem nos piores momentos. Manteve suas idéias
esquerdistas, abraçando-as sem medo, ainda que isso lhe custasse rusgas nas
redes sociais e ruptura de amizades. Nas reuniões políticas, com um microfone,
não deixava de se posicionar, com inflamados discursos com conhecimento de
causa política e econômica.
Obcecado pela
musculação, praticou os exercícios quase todos os dias da sua vida, no afã de
não se atrofiar e poder viver. Louco por Montes Claros, pequi e tradições, era
aficionado das Festas de Agosto, especialmente dos catopês. Foi presença
constante no cenário cultural da cidade. Os limites físicos não obstruíram seu
mundo amplificado pela internet, espaço invadido por ele desde os primórdios.
Ainda que tivesse mãos pouco habilidosas, digitava e teclava qualquer aparelho,
por mais delicado e pequeno que fosse. Sob todos os aspectos era um amante da
mulher bonita e da música regional. Enxergava longe, fazia contatos virtuais,
não se intimidava, indo buscar novidades onde elas estivessem. Foi agente
cultural, trazendo cantores a Montes Claros para shows e participação em
programas de rádio. Teve poemas musicados e o Programa Nossa Arte Nossa Gente,
da Rádio Unimontes é a sua cara. Na hora de anunciar o fim, Alex Tuta diz: “Que
Penninha!”
Economista por
formação (Unimontes sem cotas), e servidor público estadual concursado,
trabalhou por 15 anos no Hospital Universitário Clemente de Farias, HU, no
setor de humanização. Organizou festas, visitas, palestras motivacionais e
shows musicais, para construir novos cidadãos. Uma semana depois de completar
56 anos, uma infecção pulmonar levou o doce poeta às seis horas da manhã, na
boca do dia 11 de fevereiro, ele, que tinha aniversariado no dia 4.
Sem ele, o Facebook
perde a graça. Quem vai falar bem do Governo? Sua morte muito comentada recebeu
textos, elogios, poemas, frases, fotos e publicações, mostrando sua imensa
estatura poética e humana. Há muito venceu críticas e restrições. Pela
psicanálise, subiu num caixote de puro amor-próprio, e de lá olhou o mundo
cego, que em parte o hostilizava. Tinha a certeza de que, para quem tem
coragem, não ser perfeito é um detalhe. Superar-se é o que importa.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Nota do Editor:
O poeta, o ser humana,
a magnífica e exemplar figura de Penninha Junior nos deu o privilégio e a honra
de ter sido colunista fixo do Literário. Brindou-nos, por um período de seis
meses, com vinte e cinco dos seus maravilhosos, sensíveis e inteligentes
poemas. Ficará, portanto, para sempre gravado no coração e nas mentes dos
seguidores e dos leitores deste nosso espaço voltado à Literatura. Afinal, como
Guimarães Rosa escreveu um dia: “os poetas não morrem: Ficam encantados!”.
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