Arte e tecnologia
* Por
Carlos Chagas Filho
"A Física do
Universo é a base da criação humana". LE CORBUSIER - Nos Moyens
O estudo da influência
da ciência sobre a arte no século XX revela, de início, a dificuldade que teve
o homem moderno para integrar a ciência ao domínio cultural e considerá-la -
bem como suas aplicações - qual nova expressão do pensamento, seja como
instrumento de cultura, capaz não somente de aumentar o alcance da ação humana
e a sensibilidade do homem, mas também de servir como intermediário útil entre
o artista e a natureza que serve de fonte à criação, compreendendo-se nesta a
própria abstração, que no fundo é o resultado da assimilação de experiências
múltiplas.
Todavia, para estudar
a influência referida deve-se considerar não só a do pensamento científico como
a da técnica. Para fazê-lo, será necessário começar pela que foi exercida
indiretamente, a qual precedeu a contribuição direta trazida pela técnica à
criação artística.
Assim fazendo,
percebe-se que desde as primeiras grandes realizações técnicas do século XIX,
tais como a locomotiva e o navio a vapor, alguns artistas já se haviam
inspirado nesses novos elementos renovadores da evolução social para a
realização de suas obras de poesia, pintura e música, mas é necessário
chegar-se à segunda década, ou quase, do século XX, para que a transformação do
pensamento criador seja definitivamente estabelecida, e que a ele venham
incorporar-se os elementos fornecidos pelas ciências, que haviam evoluído
paralelamente, a princípio com lentidão e depois quase que explosivamente.
Evolvendo
paralelamente, arte e ciência não se poderiam encontrar. Assim, não poderia ser
reconhecido antes o elemento estético da "máquina". Representava
então a técnica uma atividade utilitária, de caráter ancilar, não podendo
pretender por si mesma reivindicações estéticas. Basta apontar, em apoio desta
afirmação, que os construtores das invenções que produziram a revolução
industrial tiveram necessidade de sobrecarregá-las com ornamentos, os quais
correspondendo à arte figurativa do século XIX, parecem-nos hoje infantis e, ao
mais das vezes, ridículos. Foram eles apostos para tornar as máquinas mais
aceitáveis aos olhos do seus usuários, segundo os critérios convencionais da
sociedade da época, cuja estrutura iria, aliás, sofrer modificação radical,
provocada por essas mesmas invenções.
A separação entre arte
e técnica é, porém, a expressão da existência de duas maneiras de pensar, e
reproduz, na verdade, o desprezo mantido pela grande maioria das classes
sociais, em relação à segunda. Impediu ele que esta se apresentasse sob as
formas que lhe vêm de sua própria estética, e que viriam depois influenciar
vigorosamente a arte de nossos dias.
Pode-se admitir que
foi a arte moderna - cuja característica principal é o despojo e a supressão de
todo excesso, seja pela redução do objeto às formas imanentes à sua natureza,
seja pela representação de idéias por massas - que veio na sua fase inicial
buscar inspiração na ciência. A nova arte reflete, sem dúvida, a unidade que as
concepções da ciência moderna - sobretudo da física dos quanta, da relatividade
da geometria não-euclidiana - deram à interpretação da natureza.
Mas ainda, o artista
moderno, na sua interpretação do homem, passou a procurar nele as formas comuns
à natureza, provavelmente porque sentiu que as leis da mesma, consideradas até
o fim do século XIX como aplicáveis somente ao mundo dos objetos, se mostraram
válidas para a interpretação dos fenômenos vitais.
É neste contexto que
deve ser considerada como fundamental a eclosão do cubismo. Nele, a impressão
estética é procurada, não mais pela associação da forma geométrica à cor,
podendo ambas ser submetidas às leis pelas quais o homem descreve o mundo
exterior.
Duchamp vai mais além;
a sua pintura traz, como elemento criador de impressão estética, a interação de
formas vivas e de máquinas, antecipando assim alguns aspectos da pintura
surrealista, e provando não somente que a ciência tornara-se um fio condutor do
pensamento artístico, mas também, e sobretudo, que os dados de documentação
científica, os instrumentos que o cientista usa, bem como os produtos da
aplicação da ciência, compreendem elemento estético espontâneo, neles mesmos
integrados.
Esta integração
encontra provavelmente a sua mais dramática a expressão na escultura de
Brancuse, no período entre as duas guerras. Como o assinala Louis Munford, o
inspetor aduaneiro norte-americano que quis cobrar imposto alfandegário de suas
obras, como se fossem máquinas, realizava, sem o saber, uma interpretação justa
do poder criador do artista. Deveria ela ser considerada, na verdade, como um
elogio.
A reação a esta nova
era de criação artística foi violenta. Foi ela representativa de uma classe
social que se sentia ameaçada, e estendeu-se por toda parte. A vigorosa repulsa
do público, durante a primeira representação de Pelléas et Mélisande, reflete
um sentimento generalizado que teve ainda maior expressão no domínio da
pintura, como o indicam as dificuldades que encontrou a Galeria Sezession, de
Viena, primeiro museu da pintura chamada moderna, e as manifestações hostis a
Picasso, Braque, Léger e Miró.
Bem mais tarde é que
se encontra o exemplo mais ilustrativo da integração da ciência à arte. São os
"mobiles" de Calder. Cria-se neles, intuitiva ou explicitamente, a
expressão estética de uma arte originária das leis elementares da mecânica
física, eliminando por conseguinte todo o supérfluo. A obra de Calder é por
isto muito superior a certos ensaios posteriormente feitos.
Pode-se, pois, dizer
que o espírito científico de nossa época se integra definitivamente no
movimento de criação artística.
É desnecessário
assinalar que a criação artística não sofre somente a influência dos métodos
científicos. Muito mais do que isto, a integração da ciência à arte deve-se ao
fato (acentuado por muitos críticos) de que não podemos mais compreender ou
interpretar o meio em que vivemos, e dele tirar os elementos de criação - mesmo
aqueles que refletem uma contradição rude à ordem, à harmonia e à beleza
convencional - sem que a eles associemos as modificações introduzidas pelas
concepções libertadoras que a ciência trouxe à cultura.
Às deformações
introduzidas conscientemente na pintura ou na escultura, sublinhando por
exemplo o desequilíbrio de massas, são conseqüência do fato de que, ao
conquistar a natureza, o homem não se sente mais obrigado a descrevê-la como
seu escravo. Da mesma maneira, a beleza dos "mobiles" advém do fato
de que neles se sente a profunda ligação de seu movimento a regras, intuitivas
para alguns, é bem verdade, mas suscetíveis para outros de uma representação
física, e até mesmo de uma formulação matemática.
Representam, em suma,
a beleza que admitimos existir no movimento dos átomos.
A integração de elementos
científicos à cultura atinge intensidade cada vez maior. Em conseqüência,
certas expressões utilizadas no domínio científico são incorporadas ao das
artes, perdendo naturalmente sua significação primeira para adquirir uma outra.
Talvez seja importante
ressaltar este fato, quando procuramos mostrar a influência da ciência e da
técnica sobre a arte. É o caso, por exemplo, das chamadas
"experiências" artísticas que, na realidade, não possuem a
significação das experiências científicas. No caso destas, partindo-se de uma
hipótese fundamentada em geral em teorias, ou na observação de um fato,
chega-se à sua confirmação, modificação, ou à sua negação, ou então à
formulação de nova hipótese, que pode dar origem a nova teoria. A experiência
chamada artística, ao contrário, é, na maioria dos casos, uma tentativa de
obtenção de nova forma de expressão que a justifique, ou de uma reação
psico-sensorial diversa.
Pode-se, pois, afirmar
que a integração do pensamento científico à cultura moderna modificou as
perspectivas da criação artística. Sua contribuição, que até o século XX se
limitava a fornecer aos artistas os instrumentos necessários para a realização
do respectivo trabalho, tornou possível novo desdobramento do espírito criador,
e desempenha papel essencial na eclosão de novas formas de expressão.
[...]
É o caso da música,
onde à possibilidade de utilização de instrumentos eletrônicos se junta a da
criação eletrônica propriamente dita, que já superou o simples quadro da
experiência de avant-garde. Aqui também, depois de uma fase onde a técnica
serviu somente de instrumento auxiliar, torna-se ela o trampolim necessário
para um salto decisivo.
Esta verificação
mostra as perspectivas do futuro. Nele desabrochará uma nova forma de arte,
plena de manifestações multidisciplinares, nas quais o som e a forma, o
movimento e a cor, se combinam para criar um novo "ato estético".
Sem bem que
iniciativas tais como as do poema eletrônico de Le Corbusier, que se enquadra
nestas atividades multidisciplinares, sejam ainda raras, outras mais discretas
começam a aparecer pouco a pouco, as mais das vezes com grande êxito.
Não será necessário
acentuar que estas iniciativas têm encontrado uma reação vigorosa, que não se
limita unicamente ao público não esclarecido. Na verdade, assim tem sido para
vários dos progressos técnicos incorporados à criação artística, até mesmo em
círculos onde não seria de esperar que isto se produzisse. É espantoso, por
exemplo, ver que o maior gênio do cinema - na verdade um dos maiores artistas
de todos os tempos, Charles Chaplin - hesitou durante anos a fio para
finalmente incluir o som nas suas fitas cinematográficas. Entretanto Tempos
modernos é, sem contestação, uma das maiores realizações de arte de nossos
tempos.
Mas a tendência da
arte moderna em produzir efeitos combinados exige um poder de criação muito
mais forte do que a arte monodisciplinar. Daí o seu atraso.
Os elementos que a
técnica pode fornecer para tanto acabarão certamente por convencer os que
vigorosamente contestam o seu valor.
De qualquer forma,
cabe à técnica responsabilidade ímpar. Posta ao serviço do artista, deve ela
facilitar-lhe simultaneamente o aperfeiçoamento de seus instrumentos e a
criação de um mundo novo, o que permitirá manter, segundo a expressão de Le
Corbusier, a chama dos valores eternos.
É para este duplo
objetivo que se volta a formação do artista moderno: dominador das técnicas, e
não seu escravo, terá ele de utilizar, para uma nova estética, cuja
significação independe das condições quase inumanas em que se desenvolve a era
tecnológica, os instrumentos que esta lhe pode fornecer.
Documento de trabalho
para o Colóquio "Arte e Tecnologia". Tiflis, abril de 1968.
(O minuto que vem,
1972.)
* Médico,
professor, cientista e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras
Nenhum comentário:
Postar um comentário