segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Acidente nos Apalaches


* Por Daniel Santos


Pelo menos, tinha o trenzinho para brincar, porque de resto ... De resto, eram expectativas demais para atender. Queriam-no o mais culto, o mais inteligente, o mais belo, o mais gordo ... Era de enlouquecer!

Desobedecesse, vinham as recriminações, o azedume punitivo dos frustrados, fora os urros raivosos do pai que o exigia à mesa de estudos ao chegar do trabalho, mas o garoto escapava no seu trenzinho para longe.

Muitas vezes, depois das aulas, divertia-se a tarde inteira no sótão, mas lá pelas cinco horas franzia-se de mal-estar: a qualquer momento, o pai chegaria. Corria, então, aos estudos. Mas, de uma vez, distraiu-se.

Por isso, quase descarrilou numa curva dos Apalaches. Acelerava, então, com dificuldade nos trilhos cobertos pela neve que confundia perspectivas, quando ouviu urros de possante máquina já à porta do sótão.

O menino conhecia aquela ameaça, tentou frear, mas a porta se abriu e uma locomotiva avançou com baforadas de fúria.  Impossível evitar a colisão. E o pai desceu o braço com todo o ferro da sua autoridade.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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