A infância de Machado de Assis
A infância de Machado de Assis foi tudo, menos feliz e digna
de ser recordada com saudade, como a de muitas pessoas. Foi marcada, sobretudo,
pela miséria, por preconceito, por perdas de entes queridos, por falta de
perspectiva e, até, por certo abandono. Moacyr Scliar, um dos mais meticulosos
analistas dessa fase da vida do escritor, caracterizou-a como “muito pesada”.
Escreveu mais: “Ele parecia fadado a terminar como operário anônimo, bandido ou
até morto”. Exagero? Não: realidade!!! Pelo menos é o que acontece com a imensa
maioria das pessoas que têm infâncias como a dele. Mas... esta não é uma regra
na vida. Aliás, ela não tem nenhuma, e nem mesmo lógica.
Conheço pessoas que nasceram e foram criadas em lares saudáveis,
em que nunca faltou nada do bom e do melhor, que tiveram educação esmerada,
estudaram nas melhores escolas, mas... fracassaram. Algumas recorreram ao
álcool ou às drogas e se destruíram. Outras tiveram casamentos infelizes, se
desiludiram e abriram mão de lutar por uma condição de vida melhor. Várias
descambaram para a marginalidade e se perderam, indo mofar em prisões ou mortas
em confrontos com a polícia ou com outros bandidos. Casos como estes sequer são
raros.
Em contrapartida, conheço várias pessoas que nasceram em
circunstâncias que não desejo nem para o pior inimigo. Algumas eram frutos de
pais despreparados, não raro absolutamente analfabetos (quando não filhos
indesejados, ás vezes de mães solteiras, abandonadas pelas famílias tendo que
ganhar a vida na prostituição). Outras tantas foram criadas no maior abandono,
ao Deus dará como se diz, passando fome, sendo vítimas de violência doméstica,
influenciadas (mal) pelo ambiente. Várias chegaram a praticar até pequenos delitos
(movidas pela necessidade ou más companhias). Tais pessoas, todavia, contrariaram
a lógica. Em vez de se tornarem bandidas, de terem morte precoce ou de serem forçadas
a viver para sempre na marginalidade, regeneraram-se. Mudaram de vida e foram
bem-sucedidas em atividades que escolheram, contrariando todos os prognósticos
e uma suposta “lógica” que nem sempre funciona.
Por que isso acontece? Não sei explicar. Prefiro a
explicação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset – expressa em vários de
seus livros – que pode ser resumida numa única citação: “O homem é o homem e
suas circunstancias”. Se estas (que não avisam, não são escolhidas e nem
escolhem ninguém, por serem aleatórias) forem favoráveis e se as pessoas
souberem aproveitá-las, podem reverter qualquer situação e se dar bem. Caso
contrário... De acordo com o filósofo espanhol, esse é o maior desafio do
homem: lutar contra as circunstâncias negativas e torná-las favoráveis. Não é
fácil e nem sempre somos bem-sucedidos. Mas é nosso desafio.
Concordo, pois, com Charles Chaplin quando observou, em uma
entrevista, que “uma pessoa pode ter uma infância triste e mesmo assim chegar a
ser muito feliz na maturidade. Da mesma forma, pode nascer num berço de ouro e
sentir-se enjaulada pelo resto da vida”. A felicidade a que o célebre ator se
refere pode tanto ser o sucesso em uma carreira, quanto em um casamento, em uma
missão, em uma vida etc.etc.etc. Foi o que aconteceu com Machado de Assis.
Nosso maior escritor nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, no
Rio de Janeiro. Seu pai, Francisco José de Assis – como lembra Anita Martins em
um texto sobre a infância do escritor – “era pobre, mulato, escravo liberto e
pintor de paredes”. A mãe, Maria Leopoldina da Câmara Machado, era uma
portuguesa, procedente do Arquipélago dos Açores, e lavadeira.
O casal era agregado da Dona Maria José de Mendonça Barroso
Pereira, viúva do senador Bento Barroso Pereira. Mulher bondosa e pia,
encantou-se pela criança recém-nascida, da qual fez questão de ser madrinha. Os
pais do futuro escritor, em sinal de gratidão, batizaram a criança com o nome
de José (em homenagem a Joaquim Alberto de Sousa Silveira, cunhado da
benfeitora) Maria (prenome da boa senhora) Machado de Assis. As “perdas” do
menino começaram cedo, muito cedo. Em 1845, quando o garoto estava com seis
anos, morreu sua única irmã, aos quatro anos de idade. E a morte passou a “assediar” a família. Não
tardou para perder a mãe, em 1849, quando tinha só dez anos, ficando aos
cuidados da madrinha. Mas as circunstâncias ruins não davam trégua. Não tardou
para Dona Maria José de Mendonça Barroso Pereira também morrer. O pai teve que
se mudar para São Cristóvão, para a Rua São Luiz de Gonzaga, número 48. Era uma
casa bem mais modesta do que o casarão do Morro do Livramento. E, para
complicar, havia aluguel a pagar. E
agora?
Bem, o pai não tinha condições de cuidar, sozinho, do menino
e ainda prover o sustento dos dois. Não tardou, pois, em encontrar uma
companheira. Era Maria Inês da Silva, com a qual se casou em 1854. Foi uma
circunstância positiva na vida de Machado de Assis, entre tantas outras
negativas. Por que? Porque pouco tempo depois o pai também faleceu. Mas o então
já adolescente encontrou na madrasta uma pessoa que se interessou por ele e que
o cuidou com desvelo e carinho, dentro de suas possibilidades. Tratava-se de
uma doceira de mão cheia que, no entanto, pôs o rapaz a trabalhar, privando-o
de freqüência à escola, já que era preciso prover o sustento da casa. Mas essa
foi uma privação apenas temporária. Todas as manhãs, o menino saía para a rua,
com um tabuleiro na cabeça, a vender os doces preparados pela madrasta. Contudo
as circunstâncias, mesmo assim, atuaram a seu favor. Como? Sua tutora
trabalhava numa escola para meninas e conseguiu que o adolescente tivesse aulas
ali.
Foi uma fase sacrificada, mas positiva, para Machado de
Assis, que dividia seus dias com o estudo, a venda de doces e, à noite, em vez
de descansar, com aulas de francês dadas por um padeiro imigrante. Para quê
aquele garoto tão pobre e frágil estudava outro idioma, se seu futuro, como
tudo indicava, seria o de exercer, e assim mesmo com muita sorte, algum trabalho
braçal? E frise-se que ele não se contentava em aprender apenas uma única
língua estrangeira. Por conta própria, aprendeu o inglês e o alemão. Eram as “circunstâncias”,
todavia, desenhando seu futuro, que então aparentava ser sombrio e ruim. Não
foi. O leitor sabe no que Machado de Assis se tornou... Fez dos limões azedos
que a vida lhe atirou uma refrescante e saudável limonada (e me perdoem o
clichê).
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Com tantas mortes devido ao atraso geral da época, nem sei porque motivo ele também não morreu.
ResponderExcluir