Poemas
nas mesas e a voz e o violão de “El Angel Negro”
* Por
Adair Dittrich
Jamais eu ou qualquer
outra pessoa poderia dizer que conheceu alguma cidade em apenas um piscar de
olhos, em curto espaço de tempo. Impossível a nós, vagantes do mundo que ainda somos,
com nossos sentidos parcos, tentando captar o todo.
Assim foi em Havana.
Um primeiro vislumbre em um ônibus de dois andares para uma volta pela cidade
com uma narrativa, trilíngue, explicando detalhes de todos os pontos altos por
onde se passava. Um turismo pela cidade toda que chamamos de “Ver Havana pela
janela”. Mas, com uma vantagem adicional. O bilhete é válido para o dia inteiro
e pode-se desembarcar e embarcar quantas vezes se queira.
E foi então que
paramos num grande parque com monumentos históricos e cheio de frondosas e
coloridas árvores. E, claro, muitos “recuerdos” sendo ali oferecidos, vendidos
e comprados.
Um antigo, majestoso e
tradicional hotel lá se encontra. Com enorme avarandado aberto para a
grande-verde-praça-parque. Já da rua se ouvia um animado som de antigos e
tradicionais boleros conhecidos que eram tocados no ritmo alucinante da salsa
envolvendo ouvidos e corações. Um conjunto de músicos e cantores com vários
instrumentos de sopro, cordas e percussão fazia a festa com e para quem
entrasse na grande varanda.
E foi ali que
encontrei um tesouro. Mesas de ferro cobertas com azulejos carregados de arte
em poemas e pinturas chamaram minha atenção pela originalidade. Tentei escrever
algumas em uma folha de papel até que alguém me chama e diz que voltaria no dia
seguinte para me buscar, quando eu acabasse de copiar tudo. Eram inúmeras mesas
e os poemas não se repetiam. Fui embora com meu povo a fim de continuarmos
nossas andanças. E, em vez de rabiscos no papel, para lá voltei noutro dia e
fotografei várias mesas com os seus poemas e sua arte.
Já escrevi que Cuba poreja arte em cada
esquina, em cada viela, em cada velha parede.
Em cada bar, em cada
restaurante, nas ruas, ou no grande muro que separa a avenida beira-mar do
oceano, o velho e famoso Malecon, estão os músicos. E eles, com seus
instrumentos, deixam o ar mais alegre, mais animado, fazendo com que se sinta
uma nostalgia ao mesmo tempo em que vibrações interiores transformam um velho
espírito em criança.
Pessoas nas ruas nos
perguntam se queremos almoçar e nos indicam um restaurante que teria música ao
vivo e que seria climatizado. Depois de longas horas com horário de almoço
vencido, sob um sol radiante, de quarenta graus à sombra e de um estonteante
céu azul e intenso, seguimos o personagem rumo ao desconhecido. Seguimos por
vielas e corredores, por verdadeiros labirintos entremeados de flores em
janelas e, já quase desconfiados e exaustos, chegamos a um pequeno espaço onde
não havia mais que dez mesas com arranjos florais multicoloridos.
Fomos recebidos com
ufanismo pelas garçonetes e lá nos acomodamos saboreando as famosas cervejas
cubanas enquanto as pedidas lagostas iam sendo preparadas.
Lá, num canto,
abraçado a seu violão que dedilhava com arte e amor, estava um homem de cabelos
brancos que cantava sorrindo.
As melodias que ele
tocava e cantava eram todas conhecidas. Por mim. Clássicos boleros com mais de
meio século de vida. E, lá fui eu, timidamente, pedindo outros mais e mais
outros e ele lá, dedilhando ao violão, cantando e encantando.
Pedi que cantasse
“Angelitos Negros” que ele não se recordou de imediato. Fui, então, tentando
entoar com minha desafinada voz algumas frases e então brotou a música inteira
que assim termina:
“… por que nunca te
acordaste
de pintar un Angel
Negro?”
Depois dos acordes
finais em seu violão o cantor sorriu para nós e nos disse:
“Mi nombre es Angel”.
E ele era negro.
Emociono-me ainda
quando lembro dos olhos de Angel, ao violão, marejados de lágrimas e depois o
abraço único, abraço irmão, que parecia ser o abraço de reconhecimento de quem
se conhecia a milhares de anos.
E ele, ali, continuou
tocando e cantando pelo resto da tarde fazendo com que o mundo dançasse feliz.
* Médica e escritora
Nenhum comentário:
Postar um comentário