E Charlie é o quê, afinal?
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Depois do assassinato
de jornalistas do Charlie Hebdo, uma guerra discursiva explodiu na mídia e nas
redes sociais com disparos de palavras que felizmente não matam um prato de
feijão, só trucidam, às vezes, a sintaxe e a razão. De um lado, o exército
"Eu-sou-Charlie" e, de outro, "Eu não-sou-Charlie", ambos
comandados por insignes "generais".
Nesta guerra
incruenta, a questão central, no entanto, não é to be or not to be, mas o que
cada lado entende por Charlie. That is the question. A pergunta que o
psicanalista Contardo Calligaris fez em sua coluna na Folha de SP é pertinente:
- Sou Charlie. E
Charlie é o quê?
Charlie Hebdo é um
jornal com charges "perigosas, criminosas e de péssimo gosto",
responde a milícia anticharlista, comandada pelo teólogo Leonardo Boff, que
postou artigo "Je ne suis pas Charlie", de autoria do jornalista Rafo
Saldanha, mas atribuído inicialmente ao próprio Boff e depois ao padre Antonio
Piber e cujo conteúdo foi de qualquer forma comentado e referendado pelos três.
Leitor assíduo e
entusiasmado que fui por muitos anos do Charlie Hebdo, me autonomeio
correspondente de guerra para enviar notícias do front de batalha e cobrir os
ataques feitos pelos dois exércitos.
A santíssima trindade
Boff-Piber-Saldanha, responsável pela difusão do citado artigo, embora
criminalize as charges, lamenta o atentado que "poderia ter sido
evitado", se logo "no primeiro excesso" a justiça francesa
tivesse punido o jornal. "Mas isso é censura, alguém argumentará. E eu
direi, sim, é censura", confirma o trio justificando que "nem toda
censura é ruim".
Existe, portanto, a
possibilidade de termos um Index Librorum Prohibitorum do bem - segundo a
avaliação de quem já nele figurou. Essa noção de "censura boa" capaz
de proteger vidas acabou dando munição aos atiradores de ralé situados nas
trincheiras dos blogs e do facebook, que atacaram com rajadas de adjetivos
desqualificativos o Charliezorum Hebdomadorum.
Humor cristão
Um sargento da tropa
anticharlista, Jonathan Nemer, que se apresenta como "humorista
cristão" - seja lá que diabo isso signifique - critica os desenhos da
revista "que ridicularizam a fé de diversas religiões, incluindo o
cristianismo". Alguns soldados rasos apoiados na declaração do Papa
Francisco - "se xingar minha mãe, espere um soco" - denominaram as
charges de "provocação irresponsável" e de "grave
incompetência" dos cartunistas que "fizeram por merecer".
Acusaram Charlie de "islamófobo especializado em blasfêmias".
Esses - digamos assim
- argumentos, foram desmontados por Luís Fernando Veríssimo, Contardo
Calligaris, Gregório Duvivier e Miguel do Rosário entre outros.
Para Veríssimo, a
alegação de que "os cartunistas foram longe demais é o mesmo raciocínio de
quem diz que mulher estuprada estava pedindo". Ele define
"blasfêmia" como uma afronta ao sagrado. "Assim, a verdadeira
discussão não é sobre o que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que
consideram sagrado. Quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um
blasfemo".
O mesmo tipo de
armamento foi usado por Contardo Calligaris (Por que eu sou Charlie?) para
rejeitar a acusação de islamofobia, ele prefere a classificação de
cretinofobia.
- "Charlie Hebdo
é uma publicação cretinofóbica, porque acha cretino qualquer um que adira a uma
crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente. Por isso
seria exato dizer que para Charlie Hebdo nada é sagrado. Nada é sagrado para
todos, SALVO o princípio de que nada deve ser sagrado para todos. O que não é
pouca coisa".
Para Gregório
Duvivier, o que define o humor é justamente a brincadeira com o sagrado. Já que
tudo é sagrado para alguém no mundo - a maconha, a vaca, a santa de madeira, o
Daime, Jesus e Maomé - tudo merece respeito e falta de respeito.
Portanto, "os
chargistas que mesmo ameaçados não baixaram o tom, não devem ser tratados como
pivetes malcriados que fizeram por merecer, mas como artistas brilhantes que
morreram pela nossa liberdade. Nosso dever é continuar lutando por ela, sem
fazer concessões nem perder aquele ingrediente essencial: a falta de respeito
pelo ódio".
É isso. O semanário
Charlie Hebdo é um pequeno jornal alternativo francês que, no melhor espírito
anárquico e irreverente de maio de 1968, sempre sacaneou o poder e as
instituições que tem orçamento e hierarquia: estado, igrejas, mídia, bancos,
academias, partidos políticos, forças armadas, polícia. Nem eles próprios escapam,
riem de si mesmos. Wolinski declarou que depois de morto e incinerado, queria
que suas cinzas fossem jogadas na privada de sua casa para que ele, de um lugar
privilegiado, pudesse contemplar o fiofó da amada.
Humor corrosivo
Pornográfico,
desabusado e crítico, libertário e libertino, seu humor ácido e corrosivo, seu
espírito satírico e gozador, seu atrevimento, sua insolência e agressividade,
algumas vezes - confesso - me escandalizaram. Lembro de uma capa em que aparece
Marine Le Pen, deputada racista de extrema-direita, de quatro, sendo enrabada.
Na outra, se jura que todo racista tem pinto pequeno. Tive de esconder de minha
mãe o exemplar que exibia na capa foto da gruta de Lourdes, na qual um soldado
uniformizado debochava da Virgem Maria, que estaria menstruada. Passou dos
limites?
- Existe limite para o
humor? - pergunta Duvivier, que imediatamente dá a resposta:
"O limite está no
objeto do riso. Rir de quem está por baixo é covarde, rir de quem está por cima
é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido".
Num belo artigo em que
justifica "porque sou Charlie", Miguel do Rosário nos informa que
"as artes francesas sempre se notabilizaram pelo escândalo, pelos
excessos, pelo enfrentamento atrevido a toda forma de autoridade, no Estado, na
Igreja, nas convenções sociais". No entanto, os "leigos" em
cultura francesa classificam de xenofobia e islamofobia, as charges porque elas
são agressivas. "Mas não é verdade - escreve Miguel - os desenhos de
Charlie são herdeiros da tradição estética francesa voltada para a escatologia,
o excesso, o escândalo".
Ele cita trechos de
Rabelais, mas podia ampliar a longa lista com Voltaire, Marat, Sade e tantos
outros, além da forte tradição anticlerical. Lembra ainda que na França não é
crime blasfemar, zombar das religiões e de seus símbolos. Os excessos punidos
por lei são a difamação contra pessoas, o racismo, o antissemitismo, a
incitação à violência ou ao ódio, o que levou algumas vezes o próprio Charlie
Hebdo a ser condenado pelos tribunais. O "normal" é quem se sentir
ofendido recorrer ao tribunal e não ao soco, às bombas ou à censura.
Portanto, quando
alguém afirma "eu sou Charlie" não está necessariamente assinando
embaixo de todas as charges. Está se solidarizando com jornalistas
assassinados, está defendendo a liberdade de expressão em qualquer parte do
mundo.
Charlie são os dois
mil mortos nos últimos dias na Nigéria em atentados terroristas cometidos por
extremistas. Charlie é Amarildo morto pela polícia carioca. Charlie são os
milhares de membros da minoria tamil massacrados no Sri Lanka, os muçulmanos
trucidados pelo Emirado Islâmico, os negros eliminados pela polícia dos Estados
Unidos, os presos de Guantánamo, os palestinos, os judeus, os povos indígenas
violentados pela invasão de suas terras, com seus líderes assassinados.
Embora algumas charges
do Charlie Hebdo tenham me escandalizado, não gostaria de viver numa sociedade
em que elas fossem proibidas. Por isso, eu já fui Boff, quando ele, censurado e
perseguido pelo Vaticano, constava no Index. Hoje, chuí Charlie.
* Jornalista e historiador
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