Perda da fé
* Por
Ivan Lins
Até os quatorze anos
conservei-me católico fervoroso, confessando-me e comungando com frequência. Em
começos de 1919, porém, tendo sido atropelada uma ex-empregada nossa, Rosalina,
fui, com minha mãe, visitá-la numa casa de cômodos instalada em velho casarão
na rua Carvalho de Sá, pouco acima da Igreja Nossa Senhora da Glória. Logo na
entrada deparamos com crianças de três a quatro anos seminuas, muito magras e
pálidas, de barriga estufada, num estado de subnutrição impressionante. Tudo
nesse velho casarão denotava a miséria dos seus moradores. O quarto em que
estava a nossa antiga empregada devia ter pouco mais de doze metros quadrados e
nele, segundo nos declarou, dormiam, na maior promiscuidade, oito, e, às vezes,
dez pessoas. Foi o meu primeiro contato violento com o sofrimento humano,
passando, desde esse momento, a perguntar-me: sendo Deus onipotente, onisciente
e de infinita bondade, como pode consentir tanta desgraça na terra?
Então me veio à
memória o que havia lido com meu pai, no livro de Cícero sobre a Natureza dos
Deuses, onde narra que perguntando Hierão de Siracusa a Simônides: "Que
coisa é Deus"?, pediu-lhe o filósofo alguns dias para responder, findos os
quais lhe disse: "Quanto diutius considero, tanto mihi res videtur
obscurior" - "Quanto mais penso, tanto mais obscura se me apresenta a
coisa", conceito que, ao analisar com o professor Bôscoli a estrofe 80 do
canto 10o dos Lusíadas, vi confirmado pelo vate luso:
"... mas o que é
Deus, ninguém o entende
Que a tanto o engenho
humano não se estende."
Pondo-me, a partir
desse momento, a investigar o grave problema que me salteou na casa de cômodos
da rua Carvalho de Sá, encontrei, na biblioteca de meu pai, o livro de Jules
Carré: Démonstration de l'inexistence de Dieu, onde ele atribuiu a Epicuro, no
terceiro século antes de nossa era, o seguinte raciocínio, desde então, a meu
ver inabalável:
"O mal existe.
Todos os seres vivos sofrem, ora pelo corpo, ora pelo espírito. Padecemos pelas
intempéries, pela miséria, pelas doenças, pela ignorância, pelos vícios, pelas
injustiças, pelas guerras, etc. Crianças há que só nascem para sofrer e morrer.
Homens existem de tal modo desgraçados que melhor lhes fora nunca haverem
nascido. O mal existe, portanto: eis uma verdade incontrovertível. Ora, uma de
três: 1ª (Deus sabe que o mal existe, pode suprimi-lo e não quer fazê-lo - tal
Deus seria mau, logo inadmissível); 2ª Deus sabe que o mal existe, quer
impedi-lo e não o pode; neste caso não seria todo poderoso, e,
consequentemente, é inadmissível; 3ª Deus não sabe que o mal existe, donde Deus
seria ininteligente, e, portanto, também inadmissível" (Apud Jules Carré:
Démonstration de l'inexistence de Dieu, págs. 5 e 6 da ed. de Paris, 1912).
Logo, se Deus existe,
ou não possui, em grau infinito, bondade, poder e inteligência, ou, se os
possui, procede como se não interferisse nos acontecimentos terrestres. Daí não
há como fugir.
Não constituem os
terremotos catastróficos, como o de Lisboa no século XVIII, cidade tão
exaltadamente católica nesse tempo, a prova cabal de que se existe, no
Universo, um Ser Superior, ele não se ocupa com as minúcias do que ocorre em
nosso miserável planeta?
Na observação de
Pascal, há ainda mais: segundo as leis naturais, se Deus existe é
incompreensível, porque não tendo partes, nem limites, nenhuma relação
apresenta conosco, escapando aos nossos sentidos e à nossa mensurabilidade. A
concepção de Deus se torna, pois, a seu ver, um assunto muito mais de sentimento
do que de razão: quem crê em Deus o sente, mas não o demonstra.
Por outro lado,
quaisquer que sejam as opiniões adotadas sobre Deus, a alma, a criação, a
eternidade da matéria, os milagres, o céu, o inferno, a Trindade, a encarnação
e a crucificação de Jesus Cristo, de onde vêm e para onde vão os homens depois
da morte, em nada essas opiniões modificarão o curso das coisas do Universo,
chegando o maior sábio e santo ao termo de sua existência tal qual o mais
completo imbecil e o mais execrável criminoso.
Fui, desde então,
atormentado por cruciante perplexidade, ficando em condições de avaliar bem o
sofrimento daquele "grande mestre de teologia" da Universidade de
Paris, o qual, conforme conta Joinville em sua vida de São Luís, um dia
procurou, sucumbido, o Bispo de Paris, a fim de dizer-lhe, debulhado em amargas
lágrimas, que não podia mais obrigar o seu espírito a crer o que, sobre o
sacramento do altar, ensina a Igreja.
Afligia-me, na perda
de minha fé, o desmoronamento de que via ameaçados os princípios morais e
sociais, que até aí me haviam norteado a vida, esteados todos na concepção de
Deus, ministrada pelo Catolicismo. E, a partir desse momento, passei a fazer
aproximações entre as desordens morais e sociais de nossos dias e as que
afligiram a Roma dos Césares, de que tomara conhecimento através de Tácito,
Suetônio e Petrônio.
Meu sofrimento
decorrente desse estado de espírito foi muito grande. Mais de uma vez procurei
o confessionário da Igreja São João Batista, na rua Voluntários da Pátria, e
expus ao seu vigário, Padre Rosalvo Costa Rego, as angústias que me iam na
alma. Em seus conselhos, como confessor, ele advertiu que o único remédio, para
os problemas que me atormentavam, era a oração, cabendo-me implorar
ardentemente a Deus que me concedesse de novo a graça da fé, afastando de meu
espírito as dúvidas nele suscitadas pelo sofrimento das camadas pobres de nossa
população. Numa dessas conversas lembrou-me que, diante do mesmo problema,
caíra Santo Agostinho na heresia maniqueísta, passando a admitir dois
princípios igualmente poderosos - o do Bem e o do Mal. Dela só se livrou ao
rejeitar a razão no exame dessas questões para exclusivamente aderir à fé, que
não admite empreenda o homem penetrar nos imperscrutáveis desígnios e mistérios
da vontade de Deus. Seria o mesmo que o barro a interpelar o oleiro por fazer
dele um vaso desta ou daquela forma.
Por mais porém que
rogasse e apelasse para a graça divina no sentido de restituir-me a fé perdida,
jamais a recuperei e atravessei perto de quatro anos em cruel descrença e
pessimismo, deleitando-me, nessa fase, com a leitura de Nietzsche e
Schopenhauer, sobretudo as Dores do mundo deste último, numa tradução, se não
me engano, de Albino Forjaz Sampaio, editada em Lisboa. Assim me mantive até
meados de 1922.
Epitácio Pessoa,
sobrinho do Barão de Lucena, fora recebido com sérias restrições pelos
positivistas ao ascender à Presidência da República, visto acharem que era um
saudosista da monarquia, sendo disto indubitável indício haver restabelecido as
ordens honoríficas prescritas pela nossa Constituição de 1891, a qual
mantivera, sob este aspecto, as tradições da Revolução Francesa. Contra ele
tomou posição veemente Reis Carvalho, e, em represália, Epitácio o transferiu
do seu posto da Alfândega do Rio para a de Manaus. Era esta uma cidade
inóspita, e, vindo a adoecer, Reis Carvalho pediu uma licença a fim de
tratar-se no Rio. Para embarcar, exigiram-lhe, porém, de acordo com recentes
determinações do Governo Federal, atestado de vacina. Insurgindo-se, contra esta
última, velho cavalo de batalha de seus correligionários da primeira geração,
Reis Carvalho requereu um habeas-corpus ao Supremo Tribunal Federal, através do
Dr. Bagueira Leal e do Dr. Otávio Murgel de Rezende. Meu pai que adquirira, em
seu convívio com João Pinheiro, simpatias pelo Positivismo, lhe deferiu o
pedido em longo voto exarado na sessão de 19 de abril de 1922, o que levou o
Dr. Bagueira Leal a oferecer-lhe várias publicações do Apostolado Positivista
do Brasil, entre as quais o Esboço biográfico de Benjamin Constant, da lavra de
Teixeira Mendes.
Concluindo eu então os
meus preparatórios, devia nesse ano prestar exame de História do Brasil. Em
meados de abril, tendo de faltar algumas aulas, o professor dessa matéria,
Roberto Seidl, determinou lhe apresentassem os seus alunos, por escrito, nos
primeiros dias de maio, os seguintes trabalhos: "Qual o papel de Benjamin
Constant na fundação da República?" "Merecem aplausos as intervenções
do Brasil no Prata?" "Foi benéfica ao Brasil a influência do Marquês
de Pombal?"
Os compêndios de
História do Brasil apenas consignavam, nesse tempo, a propósito da fundação da
República, que o tenente-coronel Benjamin Constant também participou do
movimento revolucionário, coadjuvando Deodoro. Procurei, pois, meu pai e
disse-lhe que, tendo acompanhado, como estudante em São Paulo, os antecedentes
da República, talvez pudesse fornecer-me dados para o ponto pedido a propósito
da atuação de Benjamin Constant. Deu-me ele então o Esboço biográfico de
Benjamim Constant por Teixeira Mendes, que dias antes recebera do Dr. Bagueira
Leal, e me declarou: "Muito mais do que qualquer esclarecimento de minha
parte sobre Benjamin Constant e a fundação da República, vai valer-lhe o livro
de um dos nossos homens mais notáveis. É o chefe dos positivistas ortodoxos do
Brasil e alia, a enorme saber, insuperável correção moral. Ainda há poucos dias
li um artigo em que se dizia ser este volume de Teixeira Mendes, pela
independência e honestidade, um dos mais sérios de nossa bibliografia histórica."
Observava Bossuet ser
a "conversão uma iluminação súbita". Foi o que ocorreu comigo ao ler
o livro de Teixeira Mendes, embora, literariamente, devo confessar, deixe muito
a desejar, não sendo de leitura fácil. Muitos anos depois cheguei a almejar a perda
de minha memória para lê-lo, como o fiz pela primeira vez, isto é, com o
deslumbramento que, nessa quadra, se apossou de mim. Foi o momento mais
decisivo de minha formação, desvendando-me um mundo moral, social e cultural
inteiramente novo, para o qual estava amadurecidamente preparado. Por pouco se
repetiu em minha leitura do Esboço biográfico o episódio daquele abade do
século XVIII que, pretendendo assinalar os trechos mais belos da Ilíada, ao
concluir-lhe a leitura viu ter marcado o poema inteiro. Mais tarde pude
verificar, diante do que havia acontecido comigo, a procedência da observação
de Pierre Laffitte, segundo a qual o positivista nasce e não se faz. Eu já era
positivista sem o saber, e, por isto, devorei o volume de Teixeira Mendes com
um encantamento que nunca mais encontrei em outro livro. Adotei-lhe todas as
teses, inclusive as relativas à Guerra com o Paraguai, que Roquette-Pinto,
frequentador assíduo das conferências de Teixeira Mendes no Templo da
Humanidade, admiravelmente resumiu no discurso com que, em 3 de março de 1928,
sucedeu a Osório Duque-Estrada na Academia Brasileira de Letras.
O professor Roberto
Seidl gostou de tal modo de minhas composições sobre os pontos por ele dados
para a dissertação de seus alunos que me aconselhou a guardá-las, o que fiz.
Relendo-as, para escrever estas memórias, vejo que assim concluí a propósito do
papel de Benjamin Constant na proclamação da República.
"Se não fosse
Benjamin Constant, o levante de 15 de novembro não teria passado de simples
movimento de quartéis, uma banal mudança de ministérios.
A César o que é de
César. A Benjamin Constant, pois, a glória da fundação da República! Para que
alguém se compenetre da magnitude do papel de Benjamin Constant, é preciso que
leia o maior mestre sobre o assunto - Teixeira Mendes, em sua obra gigantesca,
monumental: Esboço biográfico de Benjamin Constant."
*
Escritor, jornalista e professor, membro da Academia Brasileira de Letras
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