Aridez
de onde se extrai emoções dilacerantes
* Por
Mara Narciso
É um vexame para
alguém que se diz literato, apreciador de livros, não conhecer a obra “Os
Sertões, Campanha de Canudos” de Euclides da Cunha. As minúsculas letras nas
416 páginas da 33ª edição de 1987, impresso pela Livraria Francisco Alves Editora
são desafiadoras. Consegui vencê-las na segunda tentativa. Na primeira vez fui
até a página 49, na qual, até então, não havia aparecido nenhum ser vivo.
Entenda aqui por ser vivo uma mísera folha seca. Escrito em 1902, e referente à
Guerra de Canudos, ocorrida no interior baiano, em 1897, o autor manifesta uma
liberdade e um conhecimento vocabular assustador até para pessoas cultas. É
preciso ler devagar e com extrema atenção, relendo e avançando frase a frase,
para que não se perca o melhor da festa: riqueza na descrição da miséria, em
todas suas cores.
Por quase 50 páginas
temos em cena apenas a terra seca, o pó, os acidentes geográficos descritos
como a palma da mão, com mais detalhamento do que uma fotografia digital por
satélite, milímetro a milímetro. É como se o mapa geográfico fosse feito para
que alguém o memorizasse e tivesse de passar por lá à noite, a pé, sem bússola,
e sem perder a direção. O vocabulário é técnico e mais árido do que local
descrito. Pouco a pouco se vai entrando na imensidão do conhecimento de
Euclides da Cunha e do lugar onde acontecerá uma guerra.
É possível, durante a
leitura, sentir-se o calor descrito, o mormaço, e até mesmo a sede, além do pó
entrando narina e boca adentro. A narrativa invade o leitor, abafando-o com
vasta sequidão de minúcias. Senti-me completamente abafada e parei a leitura.
Alguns meses depois retornei ao começo, e então, senti que seria uma vergonha
recuar. Pois, se o autor construiu essa obra prima, como eu não teria capacidade
de lê-la e entendê-la?
Depois da explicação
enciclopédica sobre o relevo seguido da vegetação e aulas de Botânica, é
preciso acompanhar as análises dentro da Antropologia, Sociologia, e outras
ciências para entender o preconceito vigente à época, e que nem pode ser visto
pelos olhos atuais, do século XXI. Euclides da Cunha, na qualidade de
jornalista escrevendo o primeiro livro reportagem do país, não poupa citação de
defeitos físicos, morais e nem de comportamento quando se refere à mistura de
raças, que, na opinião dele deteriorava o físico e o caráter. Fala da preguiça
geral resultante da miscigenação, da feiúra do povo, e ele, sendo do Rio de
Janeiro, nem percebe estar vendo os baianos de forma distorcida e cruel.
Critica os arranjos
sociais e comportamentais do relapso povo que por ali sobrevivia. E muito
adiante é que surge o personagem principal, Antônio Conselheiro, que, beato
desvairado, segundo o autor, impregna o povo de fé cega e estes passam a
segui-lo em suas loucuras e vontades, obedecendo-o irracionalmente, como a um
Messias. É um típico anti-heroi, barbudo e descabelado, envelhecido
precocemente, vestido com uma bata larga e azul, seco, só ossos, de cabeça
baixa e, ao fazer pregações autônomas, e que, a cada palavra proferida
arregimentava mais gente. Tem um código próprio e incompreensível para a
população considerada civilizada. Não falava com as mulheres. Morava só. Quase
não comia. Esse detalhe do jejum é marcante entre esse povo que era capaz de
passar o dia com um punhado de farinha da mandioca e alguma água.
Vendiam o que tinham e
acompanhavam o beato, sem nem mesmo saber o motivo. E no detalhamento das ações
vai-se seguindo a narrativa. Poucos personagens recebem denominação,
funcionando no enredo como um grupo, sem individualidade. Constroem igrejas, a
comunidade cresce, ganha força, e chega às autoridades a notícia de que Antônio
Conselheiro era contra a recém proclamada República. Isso é suficiente para que
o Exército Brasileiro se prepare e se mobilize amplamente em pelotões de norte
a sul para combater os insurgentes. É preciso riscar Canudos do mapa.
Os fanáticos foram
menosprezados e muitas vezes chamados de jagunços. Isso acabou beneficiando-os,
e o fator surpresa fez com que conseguissem matar os muitos mil homens fardados
que iriam aniquilá-los. Até o narrador parece não entender como podiam homens
magros, frágeis, desnutridos, atrasados, sem organização estratégica, vencer
vários grupamentos do Exército, que em dado momento mobilizou mais de seis mil
homens para acabar com os revoltosos.
Canudos era uma vila
de cinco mil casebres de barro minúsculos e amontoados em vielas, com seus 20
mil habitantes, boa parte velhos e crianças. Lá dentro, vários arranjos
familiares, sem nenhum freio moral. Mesmo sabendo do possível resultado, do
iminente massacre, a coragem dos sertanejos faz o leitor torcer por eles. São
vencidos, porém, depois de inacreditáveis meses de batalhas. Antônio
Conselheiro já estava morto, e ainda assim continuaram lutando com a mesma
convicção. Venciam parte do Exército e pegavam as suas armas, fortalecendo-se.
De forma mais livre do
que os seguidores do beato, por atrevida, escrevo sem reabrir o livro, sem ter
anotado nada, falando exatamente o que senti e sinto, meses depois de tê-lo
encerrado. Destaco que a riqueza e variedade das palavras, algumas já em
desuso, são o maior trunfo do livro, que fala das táticas de guerra, como num
manual para oficiais, por ser mais uma das especialidades do autor. O bravo povo baiano, massacrado por diversos
batalhões de vários estados, ficou muito bem na História, com sua fé e coragem
suicida. O paraíso não é desse mundo, acreditavam. Perto deles, meu atrevimento
é um curto passeio a pé num clima ameno, oposto ao de “Os Sertões” e sua
abominável guerra.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Livro que deve servir para a edição definitiva (4ª), eu tenho a 6ª edição corrigida. Obrigado pela lembrança da obra "Os Sertões"!!!
ResponderExcluirAgradeço o comentário, José Calvino. Já li que não tem como entender o Brasil sem entrar dentro dessa guerra imoral. Um dia ainda entenderei esse nosso país e seu povo.
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